Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Fantasia para uma visita ao supermercado



fantasio
que um dia
o encontrarei
por entre as gôndolas
(de um supermercado)
fantasio que
ao levantar os olhos
das cebolas
lá estará ele —

seus olhos me
buscando
insistentemente
por entre os tomates
& as beterrabas

me atrapalho
nas compras:
preciso de chuchu —
levo rabanetes

ao nos cruzarmos de novo
por entre peixes e siris
trocamos risinhos cúmplices —
já íntimos
& coniventes.

no caixa 
(meio tímidos)
trocamos e-mails,
telefones

& marcamos encontro
para o próximo réveillon —
eu vou de rosa
ele vai de marrom...

Vitória Lima 

Detalhe de pintura a óleo "Arte na Feira", encontrado sem autoria no site do Mercado Livre



Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa



 "Phenix", de Michäel Zancan

Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa!

Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço!

Mas não.

Lá está o sol do costume
com a exactidão
duma bola de lume
desenhada a compasso...

...sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
- que é sol com bolor...

e desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.

Ah! Como queres que acredite em ti
- braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?

José Gomes Ferreira






terça-feira, 3 de julho de 2018

Poema do retorno



a terra cobra 
o que do homem 
nada sobra 

cobra o ouro 
cobra a prata 
cobra o cobre 

cobra o vento 
cobra o evento 
cobra o invento 

cobra o osso 
cobra a carne 
cobra o remorso. 

cobra o sonho 
cobra a raiva 
cobra a calva. 

cobra o cio 
cobra o aço 
cobra o ócio. 

cobra a escória 
cobra a cárie 
cobra a memória. 

cobra o modo 
cobra o medo 
cobra o arremedo. 

cobra a febre 
cobra a fibra 
cobra a vida. 

Francisco Carvalho

The Brain Trees - Images & Stock Pictures



Um movente raio de ouro
Em uma expansão de glória,
Sem esforço,
Sem vitória;
Uma linha móvel
E curva e reta sem ruptura,
Juvenil
Sempre pura:
Flexível como o vento
Insinuante,
Rápida como um relâmpago.
Riscando o ar
Sutil como o pensamento
Que cria.
E é um corpo
na sua ascensão,
ele se lança, é o homem,
ele se dobra, é a mulher
ele salta, é a criança,
Arcanjo ou gnomo,
ele é a alma
Do instante
Força e graça
Ele povoa o espaço;
De essência divina
Ele é andrógeno.
E é o mar e é o vento,
O movimento,
E a luz e a música,
O ritmo.
E é a perpétua metamorfose
No ideal apoteose;
O triunfo da utopia,
A vida;
No canto carnal de um gesto
É limitado
É infinito.
Luz na luz.
Ele se move;
E a terra
Parece pôr seus pés de fogo;
Ele a toca e em um salto sem igual
Ele reflete estendido em direção ao sol.
Ele voa
Mas procuramos em vão suas asas.
Somente seu desafio brilha
E transgride.
O ritmo o possui,
Tudo cede;
E ébrio de cadência
Ele dança.

Valentine de Saint-Point

"The Divine Madness of Vaslav Nijinsky", de Scott Ordway




A moça e a ponte



A ponte é longa
e a moça que a atravessa
tem as cores luminosas do verão.

De tão longa a ponte,
a moça solta-se e canta e dança
e nem os pilares frios da ponte
escapam do seu encanto.

A graça longa da ponte
é feita de tantos temperos
que o ritmo da vida de quem a vê
cede e se comove.

Não há no ar o menor indício
mas no final a ponte prepara
um precipício.

Edival Perrini

Pintura Mural no Calle Moret na vizinhança de Carmem (Valência-Espanha)


Aliteração



Eu quero dançar contigo
dentro do poesia,
como dança o povo dentro do Estado.

Eu quero rebolar contigo em cada rima,
como rebola o povo dentro do salário.

Eu escolho uma aliteração
para a nossa vida:
filhos, felicidade, família, feijão, farinha...
como o povo, em fé, faz folia, forra a fome com futebol e fantasia.

Wanda Cristina

"Dança (exaltação do gordo), de Fernando Botero (pintor colombiano) 



Dá-me tua mão



Dá-me tua mão, e dançaremos;
dá-me tua mão e me amarás.
Como uma só flor nós seremos,
como uma flora, e nada mais.

O mesmo verso cantaremos,
no mesmo passo bailarás.
Como uma espiga ondularemos,
como uma espiga, e nada mais.

Chamas-te Rosa e eu Esperança;
Porém teu nome esquecerás,
Porque seremos uma dança
sobre a colina, e nada mais.

Gabriela Mistral

 

"The  Dance", de Aimé Gabriel Adolphe Bourgoin 





É tão fácil
dançar
uma valsa,
rapaz...

Pezinho
pra frente
Pezinho,
pra trás.

Pra dançar
uma valsa
é preciso
só dois.

O Sol
com a Lua.
Feijão
com arroz.

José Paulo Paes


arte de Edgar Degas


A valsa


Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Valsavas:
— Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos,
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros,
Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias,
P'ra outro
Não eu!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!

Quem dera
Que sintas
As dores
De arnores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!...

Calado,
Sózinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!

Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!

Quem dera
Que sintas!...
— Não negues
Não mintas...
— Eu vi!

Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
Eu vi!

Casimiro de Abreu 

arte de Edgar Degas

Som



Nem soneto nem sonata
vou curtir um som
dissonante dos sonidos
som
ressonante de sibildos
som
sonotinto de sonalhas
nem sonoro nem sonouro
vou curtir um som
mui sonso, mui insolúvel
som não sonoterápico
bem insondável, som
de raspante derrapante
rouco reco ronco rato
som superenrolado
como se sona hoje-em-noite
vou curtir, vou curtir um som
ausente de qualquer música
e rico de curtição.

Carlos Drummond de Andrade


Arte de Carybé


segunda-feira, 2 de julho de 2018

Comumente é assim



Cada um ao nascer
traz sua dose de amor,
mas os empregos,
o dinheiro,
tudo isso,
nos resseca o solo do coração.
Sobre o coração levamos o corpo,
sobre o corpo a camisa,
mas isto é pouco.
Alguém
imbecilmente
inventou os punhos
e sobre os peitos
fez correr o amido de engomar.
Quando velhos se arrependem.
A mulher se pinta.
O homem faz ginástica
pelo sistema Müller.
Mas é tarde.
A pele enche-se de rugas.
O amor floresce,
floresce,
e depois desfolha.

Vladimir Maiakóvski

beijo - Margarita Sikorskaia



Dedução



Não acabarão com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo
firme,
fiel
e verdadeiramente.

Vladimir Maiakóvski

"Les Amoureux", de Marc Chagall




Abri as veias: irreparável,
Irreversível, a vida borbota.
Tragam pratos e vasos!
Todo prato – será raso,
Todo vaso – será magro.

Sem parar, a terra traga
E, irrigado pelas bordas,
Irrevogável, irreparável,
Irreversível, o verso brota.

Marina Ivánovna Tsvetáieva

Margarita Sikorskaia


Adultos



Os adultos fazem negócios.
Têm rublos nos bolsos.
Quer amor? Pois não!
Ei-lo por cem rublos!
E eu, sem casa e sem teto, com as mãos metidas nos bolsos rasgados, vagava assombrado.
À noite vestis os melhores trajes e ides descansar sobre viúvas ou casadas.
A mim Moscou me sufocava de abraços com seus infinitos anéis de praças.
Nos corações, no bate o pêndulo dos amantes.
Como se exaltam as duplas no leito do amor!
Eu, que sou a Praça da Paixão, surpreendo o pulsar selvagem do coração das capitais.
Desabotoado, o coração quase de fora, abria-me ao sol e aos jatos díágua.
Entrai com vossas paixões! Galgai-me com vossos amores!
Doravante não sou mais dono de meu coração!
Nos demais – eu sei, qualquer um o sabe!
O coração tem domicílio no peito.
Comigo a anatomia ficou louca.
Sou todo coração – em todas as partes palpita.
Oh! Quantas são as primaveras em vinte anos acesas nesta fornalha!
Uma tal carga acumulada torna-se simplesmente insuportável.
Insuportável não para os versos de veras.

Vladimir Maiakóvski
(tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)

imagem: Google

Música



Algo de miraculoso arde nela,
fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar
depois que todo o resto tem medo de estar perto.
Depois que o último amigo tiver desviado o seu olhar
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores explodissem em versos.

Anna Akhmátova 
(tradução de Lauro Machado Coelho)

Arte de Margarita Sikorskaia

Da natureza



quando criança
caí entre cactos
ainda me sinto
cercada de espinhos

quando menina
pude gritar
desde então
trago ecos
dentro de mim

quando mulher
uni o espinho
ao grito

Marina Rabelo

"Firts Embrace", de Michael Parkes


Transposição

na calada do dia
a dor desdorme
em sobressalto
em silêncio convulso

se
desse para ver
com os olhos alheios
pudesse crer
com a fé dos outros
calmaria

as horas só
contradizem toda
ilusão

Rosana Chrispim


"Casulo" (Cocoon), de Margarita Sikorskaia 

Torre Azul



É preciso construir uma torre
- uma torre azul para os suicidas.
Têm qualquer coisa de anjo esses suicidas voadores,
qualquer coisa de anjo que perdeu as asas.
É preciso construir-lhes um túnel
- um túnel sem fim e sem saída
e onde um trem viajasse eternamente
como uma nave em alto-mar perdida.
É preciso construir uma torre…
É preciso construir um túnel…
É preciso morrer de puro,
puro amor!…

Mario Quintana

arte de Janis Goodman

domingo, 1 de julho de 2018

Poema à Mãe



(...)
Olha – queres ouvir-me? –
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda ouço a tua voz:
Era uma vez uma princesa 
No meio de um laranjal...

Mas – tu sabes – a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade


Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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