quarta-feira, 28 de junho de 2017

Devia morrer-se de outra maneira


Imagem: Google

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira




segunda-feira, 26 de junho de 2017

Entregar-te a Minha Vida por Escrito


Foto minha


Entregar-te a minha vida por escrito
e também os meus sonhos
e os desejos
as dores e as alegrias
as conquistas e as perdas
e tudo o que é de mim...e o que não é
e a mesa do jantar, as velas acesas 
a tarte de maçã e o chá de amor-perfeito
um arco-íris em quatro épocas 
…os pensamentos e o meu silêncio 

Entregar-te a minha vida por escrito
e também havias tu e havia o céu
e havias tu e havia o mar
havia um beijo, e um olhar
uma flor, e um abraço
e a esperança
e o destino

E agasalho-te de poemas 
e cicatrizo-te das feridas
…e entrego-te a minha vida…por escrito...

Maria Nóbrega


sábado, 24 de junho de 2017

Velha Chácara


Imagem: casa da minha infância visitada através de Mr. Google Maps.
(Hj sem árvores, sem riacho sem crianças)

A casa era por aqui...
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Ah quanto tempo passou!
(foram mais de cinquenta anos)
Tantos que a morte levou! 
(e a vida... nos desenganos...)

A usura faz tábua rasa 
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...

- mas o menino ainda existe.

Manuel Bandeira



sexta-feira, 23 de junho de 2017

Segredo


Desconheço a autoria da imagem

Andorinha no fio
escutou um segredo.
Foi à torre da igreja,
cochichou com o sino.

E o sino bem alto
Delém-dem
Delém-dem
Delém-dem
Delém-dem!

Toda a cidade
ficou sabendo.

Henriqueta Lisboa



quinta-feira, 22 de junho de 2017


Fotografia minha

Hoje visitei a beira do abismo
Eu e meu jeans
No fundo, sempre achamos que o tempo não iria passar
Acocorei-me sobre o limbo que cobria o chão que pisava
Abotoei uma borboleta amarela na lapela
Cobri-me daquele sol desbotado e velho
Apanhei um cogumelo solitário que insistia em crescer na pedra
Cheirei duas nuvens passageiras
Mas resolvi não olhar para o espelho do mar.
E o azul acima da minha cabeça sempre me desafiando:
Resolvi seguir pra lá.
Estou cansado de tentarem me convencer que envelheço.

Celso Mendes

terça-feira, 20 de junho de 2017


arte surreal de Elton Fernandes

Para voar é preciso
mais do que asas
e ar,
é preciso cortar 
os medos
que nos esperam
cada manhã
ao pé da cama,
no parapeito da janela.
Cortar o medo
com faca afiada
em pequenos pedaços
e então romper o espaço
que separa o chão 
do céu.

Roseana Murray


domingo, 18 de junho de 2017



É preciso avisar toda a gente
Dar notícia, informar, prevenir
Que por cada flor estrangulada
Há milhões de sementes a florir.

É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
Engrossando a verdade corrente
duma força que nada a detenha.

É preciso avisar toda a gente
Que há fogo no meio da floresta
E que os mortos apontam em frente
O caminho da esperança que resta.

É preciso avisar toda a gente
Transmintindo este morse de dores
É preciso, imperioso e urgente
Mais flores, mais flores, mais flores.


João Apolinário