segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Recado

 

Mural de Duek Glez, "Amor Eterno" in La Nopalera, Tláhuac, Mexico, 2020

Estou aqui como se te procurasse
a fingir que não sei aonde estás
queria tanto falar-te e se falasse
dizer as coisas que não sou capaz.

Dizer, eu sei lá, que te perdi
por não saber achar-te à minha beira
e na casa deserta então morri
com a luz do teu sorriso à cabeceira.

Queria tanto falar-te e não consigo
explicar o que se sofre, o que se sente
e perguntar como ao teu retrato digo
se queres casar comigo novamente.

António Lobo Antunes

 


Parecia-lhe impossível

 

Arte de Meliha Bisic
 
Parecia-lhe impossível um silêncio assim
sem arestas nem constrangimentos,
O silêncio de dois seres que já não precisam falar para se sentirem juntos,
que já não precisam de se tocar para se saberem envolvidos um com o outro.
O silêncio do amor.

Inês Pedrosa
in Os íntimos
 
 
 
 

sábado, 19 de dezembro de 2020

J'ai lu des fleurs *


Do velho hábito
de guardar flores secas
em livros preferidos,
reencontrar os cheiros
em releituras,

te guardo,
te releio.

Yara

 

* do francês: "eu leio flores" 



A falta de Érico


 
Escultura em homenagem a Érico Veríssimo, na sua cidade natal de Cruz Alta, RS

Falta alguma coisa no Brasil
Depois da noite de sexta-feira.
Falta aquele homem no escritório
A tirar da máquina elétrica
O destino dos seres,
A explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom
Caminhando entre adultos
Na esperança da justiça
Que tarda - como tarda!
A clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,
Aquela ternura contida, óleo
A derramar-se lentamente.
Falta o casal passeando no trigal.

Falta o solo da clarineta.

Carlos Drummond de Andrade



* Em dezembro de 1975, quando da morte do poeta Érico Veríssimo, CDA escreveu esse poema-homenagem
 
 
 


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

No teu abraço



Imagem: Google

Três fósforos um a um acesos na noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O terceiro para ver a tua boca
E toda a escuridão para ver tudo isso
Apertando-te nos braços.

Jacques Prévert
in Paroles




Na fogueira da memória

 
Imagem: Google

~excerto ~

A memória é uma fogueira, quando a julgamos extinta,

reacende-se, para entendermos que nada se perdeu
Ainda escrevo, não para que regresses, mas porque acredito
que, sem o dizeres, sabes que no teto da noite
guardo o poema que sempre escreverei para ti,
não importando se o irás ler ou se menti
dizendo que o escrevi. Ainda moras aqui

E escrevo poemas

Ivo Machado
 
 
 
 

Mar

 
 desconheço a autoria da imagem

Bebo-o a colherinhas de olhos
na taça da manhã.
E nem ele se esgota,
nem eu me sacio.

Luísa Dacosta