sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

A fome

 

Paul Hill – Legs over High Tor Matlock


Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,

aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.

Luís Miguel Nava
In "Vulcão"





O beijo

 

Cherry Bite, by ftourini - on DeviantArt


Ao me beijar
esqueceu uma palavra em minha boca
Devo guardá-la
embaixo da língua?
engoli-la como um comprimido
a seco?
mordê-la até sentir
seu gosto de fruta
estrangeira, especiaria, álcool
duvidoso?
devolvê-la
num beijo
a ele?
a outro?
É pequena e dura
mais salgada que doce
e amarga um pouco
no fim.

Ana Martins Marques






Silêncio, sempre em silêncio

 

Mulher e espelho, by Mercuro B Cotto

Silêncio, sempre em silêncio,
as mulheres refazem o penteado,
que as mãos forasteiras
da noite desmancharam.
É a hora do romper do dia.
A cor da madrugada
quase que dói por dentro da pele.
E não fora a urdidura de mágoas
antigas, elas dariam, à paisagem,
o nome de um deus solar.

Graça Pires
em "Quando as estevas entraram no poema"




quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

As coisas semelhantes

 

Arte de Maisie Broadheado


Um dia tiveste a minha idade e tantas ou mais coisas
partidas do que eu. Um coração, o fecho de um colar de pérolas,
aqueles olhos vazios como o lembrete verde no topo da estante,
demasiadas palavras armadas em metáforas. Coisas semelhantes
que mais tarde alguém tentou reparar. Tempo, amor e morte – sobretudo
os seus lugares vazios.
E uma pele capaz de os alojar.

Inês Fonseca Santos






Crisálida

 

Fotografia de usamedeniz

Dissolver o cansaço na aspirina o açúcar a angústia
a lembrança no sono o tropeço os falhanços, ligar
com cimento, construir

chorar de vez em quando às escuras para a febre descer

polir palavras com escova colocá-las com pinça
no interior, derramá-las num jarro sem vinho sobre o papel,
deixar secar, recortar, recompor, calar gritos, escrever

sonhar os poemas que não se escreve, escrever os poemas que não.
Podar as plantas nos filhos, mostrar os frutos, o caroço,
o saco do lixo, a hora de ponta, suor. Depois lavar. Levar
o peito à rua, receber os outros, perdê-los, trocá-los,
devolver este par de mãos àquele mar, afogar em esforço
a carótida torcida do tempo, parar sempre noutra esquina,
fugir à vertigem com o prazer das alturas, perder,

permanecer sentado até à dor nos ossos, cronometrar paciências,
aprender na lentidão a única saída,
rápida

e envelhecer.
Acreditar?


Manuel Cintra




Gavetas separadas

 

imagem via Pinterest

Foi-se o tempo em que tudo e nada dura,
e hoje penso no acaso sem remédio
de cada um de nós guardar
o passado em gavetas separadas.

Nuno Dempster