terça-feira, 29 de outubro de 2024

Repara

 

Art: Ariana Clarice Richards


Li, no jornal, que as acácias incendiaram as ruas
e a manhã rebentou-me no peito. Deliberadamente.

Repara como se encheu de pássaros a árvore
que desenhaste no meu peito. Repara como,
lentamente, anulamos a distância das mãos
e equacionamos a linguagem do afeto na curva
dos braços. Repara como nos emocionamos com a vida
e, em segredo, nos olhamos sem qualquer pudor.
Repara.

Graça Pires





segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Por que dizes:" meu amor"

 

Arte de  Catrin Welz Stein

Por que dizes:" meu amor"
com tamanha certeza,
Quando não te pertence
Nem o nome, existência,
sequer sentido ou noção?
Dizes amar, porém,
desconheces intento,
fazes eco, apenas,
a fonemas na boca,
sem significação.

Antes de orgulhar-te
seres do amor, dono,
vista-se de humildade,
traz doçura nos atos,
acende no peito, chama,
ardente, verdadeira
e entregue-se ao
sentir inquieto da
própria pulsação;

Aí, talvez, comeces
a perceber ínfima
parcela do imenso
mundo sem fronteiras,
onde o amor ensina
as artes da criação.

Calu Barros




domingo, 27 de outubro de 2024

As meninas que brincam nas praças

 

Arte de Ivan Cruz


São anônimas e puras as meninas
Que brincam nas praças.   Inspiradas
No dinamismo inocente
De estarem possuídas pelo sol.
Ainda existe
No fundo de todas as praças-parques
Um tempo piedoso gotejando o futuro
Através de tranças e sorrisos.

Somente meninas que brincam nas praças
Sabem colher a vida e retê-la
No coração das rosas.

Se elas sabem a profecia
Que palpita velada
No mistério dos lagos.

E há um instante
No fundo olhar dos meninos
Que só elas advinham
E eternizam.

São brancas e meigas
Como trapos de nuvens
As meninas que brincam nas praças
Quando fecundadas pela ingênua
Dádiva de luz
Que as adora.

Mas eis que a primeira estrela
Surpreende o adeus do sol
E um momento imóvel
Afugenta as meninas
Que brincam nas praças.

(E as praças ficam vazias
como a vida)

Roberto Piva





sábado, 19 de outubro de 2024

Cântico negro

 

Imagem via Google


Vem por aqui”- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: “vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
— Sei que não vou por aí!


José Régio




terça-feira, 15 de outubro de 2024

Panaceia desvairada



Imagem via Google


a sin-fonia
per-cussiva
ves-pertina
dos sapatos contra a calçada
somos
multidão de torres
em concreto armado
caminhando na
mesma direção –
destinos diferentes –

transe coletivo
coletando individualidades
dissidência controlada
permitida

cada um é um
um só

Sanchez







quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Uma palavra


Fotografia de Caspar Sejensen




este poema
é uma pergunta

cuja resposta
é uma palavra

uma palavra
que lhe corta
a pele com navalha
e lhe expõe
carne
nervos
veias

e mesmo assim
você quer
que eu pergunte

e mesmo assim
você quer
me dizer
essa palavra-única
que lhe rasga

tão íntima
e crua
num sopro
sedento
palavra-tua
até os ossos

e ao ler este poema
levanta os olhos
e me encara
oráculo
e a palavra saliva
na língua trêmula
esgueirando
entre os dentes
esfinge
“me devore”

Diana Pilatti