sexta-feira, 31 de julho de 2009

Eu quando choro

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Eu, quando choro, não choro eu.
Chora aquilo que nos homens em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas mas o choro não é meu.
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António Gedeão

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quinta-feira, 30 de julho de 2009

"Querem o Céu"

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Querem o céu, a mística mansão
da alma.
E, se estivessem lá,
queriam a terra, a sórdida morada
da raiz.
Mas é o céu que lhes diz
eternidade,
verdade,
santidade
e descanso.
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Assim se pode mistificar
a preguiça,
o pecado,
a mentira
e a transitória vida natural.
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O grande tecto azul, porém, não dá sinal
de acolher o aceno.
Afaga as nuvens, e a luz solar
faz o dia maior ou mais pequeno.
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Miguel Torga

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quarta-feira, 29 de julho de 2009

"Soneto"

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Eu queria chorar pelos que não choram.
Eu queria chorar pelos olhos secos,
Pelos olhos que são fontes
Onde as mágoas se purificam e se libertam.
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Eu queria chorar pelos corações feridos
E que sangram obscura e silenciosamente.
Eu queria chorar pelas almas mártires
Que estão invisivelmente entre nós.
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Eu queria chorar pelos indiferentes
E pelos que escondem num sorriso
As decepções de uma incompreendida bondade.
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Eu queria chorar pelas almas fechadas,
Pelas almas que são como os desertos
E que não conhecem a libertação das lágrimas!
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Augusto Frederico Schmidt
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terça-feira, 28 de julho de 2009

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Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento —
Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
E o eco da outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A realidade desta ilusão.
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Fernando Pessoa


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segunda-feira, 27 de julho de 2009

" A Chuva Nos Cabelos"

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A chuva molhava os seus cabelos,
A chuva descia sobre os seus cabelos
Voluptuosamente.
A chuva chorava sobre os seus cabelos,
Macios,
A chuva penetrava nos seus cabelos,
Profundamente,
Até as raízes!
Ela era uma árvore,
Uma árvore molhada
E coberta de flores.
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Augusto Frederico Schmidt
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domingo, 26 de julho de 2009

"Sob Os Teus Pés"

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Tivesse eu as roupas bordadas do paraíso
tecidas com luz dourada e prateada
o azul e o escuro e os negros panos da noite
e a luz e as metades-luzes.
Eu espalharia essas roupas sob os teus pés.
Mas, sendo pobre, tenho apenas os meus sonhos.
Eu tenho espalhado os meus sonhos sob os teus pés.
Por isso, pise suavemente;
afinal, você está andando sobre os meus sonhos.
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Willian Butler Yeats
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sábado, 25 de julho de 2009

"A Rosa"

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Lânguida, no trono
macio de folhas
repousa
a rainha flor.
Abre-se toda em
aveludadas pétalas
de delicado
odor.
Solitária no vaso,
a rosa
pinga vermelho
na tarde sem cor.
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Lenise Marques

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sexta-feira, 24 de julho de 2009

"Soneto À Tua Volta"

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Voltaste, meu amor... enfim voltaste!
Como fez frio aqui sem teu carinho....
A flor de outrora refloresce na haste
que pendia sem vida em meu caminho.
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Obrigado... Eu vivia tão sozinho...
Que infinita alegria, e que contraste!
-Volta a antiga embriaguez porque voltaste
e é doce o amor, porque é mais velho o vinho!
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Voltaste... E dou-te logo este poema
simples e humilde repetindo um tema
da alma humana esgotada e envelhecida...
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Mil poetas outras voltas celebraram,
mas, que importa? – se tantas já voltaram
só tu voltaste para a minha vida...
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J. G. de Araujo Jorge
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quinta-feira, 23 de julho de 2009

"Amor Não é Só"

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Amor não é só de homem
por uma mulher
ou de mulher por um homem
amor é amor por tudo
que é justo e livre
amor é horror a tudo
que o ser inventa
para humilhar outro ser.
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Roseana Murray
In Fruta no Ponto

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quarta-feira, 22 de julho de 2009

Tu serás o principio

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Tu serás o princípio
e o meu fim
Pegando mal de amor
em chama alta
Vulcão em desacerto
e fogo posto
Tão grande que ele é
e já me mata.
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Maria Teresa Horta
Fogo posto

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terça-feira, 21 de julho de 2009

"Poética"

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De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O oeste é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.
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Vinícius de Morais
Em Antologia Poética, 1954

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segunda-feira, 20 de julho de 2009

"Hóstias"

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Posto que os dias são hóstias
e o cálice, a vida,
eu persigo um tempo maior
que percorra meu corpo como água corrente.
Que o novo se apresente
e eu de mim me ausente!...
Visões diferentes, asas de um pássaro
perverso e inocente,
venha o que ainda não vi
e sobre meus cabelos insinue um véu.
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Georgina Albuquerque

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domingo, 19 de julho de 2009

"Poesia"

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Era maio
e o cheiro dos maricás
preenchia a respiração,
amaciando os tecidos.
Em branco,
o domingo se espichava.
Depois, a chaminé manchou
as roupas no varal,
encardindo as mangas do dia.
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Ronaldo Machado

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sábado, 18 de julho de 2009

"Espera"

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Não existe maior solidão
Nem distância,
Nem espera tão longa
Como a de um poema que não vem.
A caneta como um gato
À espreita
Para avançar no papel.
Somente um silêncio.
Prolongado e interminável silêncio
Sem paz.
O filho nasce quando quer.
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Bianca Ramoneda

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sexta-feira, 17 de julho de 2009

"O Duplo"

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Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
- que me alimenta a tristeza.
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
- que perturba quem me ama.
Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
- pensando que eu sou ele.
Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
- e alguém calado que grita.
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Affonso Romano de SantAnna
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quinta-feira, 16 de julho de 2009

"Aeroporto"

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Redemoinha
preso o vento
- o vento ou o pensamento?
nas asas de prata e sol.
Surdamente
zune o vento
- o vento ou o pensamento
na torre de ferro e sol.
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Desliza
veloz o vento
- o vento ou o pensamento?
na pista de asfalto e sol.
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Parte o pássaro
ao vento.
Partido
o pensamento
quem fica
parte
de quem
partindo
assim se
reparte
pensamento
vento
sol.
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Bernadette Lyra
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quarta-feira, 15 de julho de 2009

"Quereres"

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Te quero
como a raiz
quer a terra
como o doce
quer a tigela
como o vegetariano
a berinjela
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Te quero
como a dobradiça
quer a janela
como a guarita
quer a sentinela
como o cinto quer a fivela
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E quando faltar espaço prá querer
vou te querer
como a fome
quer a panela
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Máucio
in Céu da Boca
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terça-feira, 14 de julho de 2009

"Qualquer Tempo"

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Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.
Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.
Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver.
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Carlos Drummond de Andrade
in A Falta que Ama, 1968.

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segunda-feira, 13 de julho de 2009

"O Beijo da Noite"

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Num instante
olhos se olham intensos
e
neste improviso de paisagens
eu encanto-me
sorvo-te
busco-te pelas cores da noite...
e
sonho com teu beijo casto!
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Milton Oliveira

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domingo, 12 de julho de 2009

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Vem, antes que eu me vá,
antes que seja tarde demais...
Vem, que eu não tenho ninguém
e te quero junto a mim.
Vem, que eu te ensinarei a voar e
a segurar nas crinas de meu cavalo branco.
Vem, que tomaremos banho na
chuva, desafiaremos o vento
e venceremos o tempo...
Vem, que o frio será tão grande,
não sentirás mais dores,
não sentirás mais nenhum mal.
Vem, que eu te quero junto a mim...
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Caio Fernando Abreu
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sábado, 11 de julho de 2009

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imagem daqui.
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Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde és Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.
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Cecília Meireles
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sexta-feira, 10 de julho de 2009

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Porque te quero demais é que não vens,
e todas as rosas espalhadas pela casa
murcharão,
e sairei dançando sozinha
a nossa canção.
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Porque te quero demais
eu te assusto,
e a vida que passa lá fora
não tem espaço para nós.
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Porque te quero demais é que escrevo
estes poemas vagabundos,
é o que sobra da solidão
dos nossos alheios mundos.
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Porque te quero demais
tu me foges.
Tu queres coisas precisas,
coisas certinhas,
sem nexo,
e eu te quero avulso, cretino
e nu,
pra me fazer voar
nas asas do sexo!
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Roseli B. dos Santos
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quinta-feira, 9 de julho de 2009

"Mar Sonoro"

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Imagem daqui.
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Mar sonoro, mar sem fundo mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós.
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
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Sophia de Mello Breyner Andresen

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quarta-feira, 8 de julho de 2009

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foto daqui
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Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.
É bom sentá-lo novamente ao lado
Com os olhos que contem o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.
Um bicho igual à mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com meu próprio engano.
O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...
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Vinicius de Moraes
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terça-feira, 7 de julho de 2009

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“De Vagar
eu quero
rever meus atos,
tapar as frestas,
rasgar retratos.
Hoje
eu quero mudar
os meus costumes,
queimarei meu diário,
- adeus, cardumes!
vou trocar
meu velho aquário por uma nuvem
de vaga-lumes
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Múcio Góes

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segunda-feira, 6 de julho de 2009

"O Tempo, Subitamente Solto"

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O tempo, subitamente solto
pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade
a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei
antes de te conhecer.
Eram os teus olhos, labirintos de água,
terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava.
Era a tua, a tua voz que dizia as palavras da vida.
Era o teu rosto. Era a tua pele.
Antes de te conhecer,
existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens
que olhava ao fim da tarde.
Muito longe de mim,
dentro de mim,
eras tu a claridade.
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José Luís Peixoto

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domingo, 5 de julho de 2009

"Amargura"

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Tens razão
dentro de mim
ainda existe a criança
cheia de medos
que chora
quando a noite se adivinha
e esta amargura louca
não sei se é ela que a sofre
ou se sou eu que a invento
e a sinto toda minha.
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Vieira da Silva

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sábado, 4 de julho de 2009

"Expectativas"

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O vento anda ficando mentiroso.
Prometeu trazer você, não trouxe.
Ficou de dizer o porquê, não disse.
Esperou que eu me distraísse,
passou depressa, rumo ao horizonte.
Já não tem importância
que cometa outra vez,
um ato de inconstância.
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Aprendi a esperar...
Se ventos são capazes de levar embora,
a qualquer hora, também,
são capazes de fazer voltar.
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Flora Figueiredo

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sexta-feira, 3 de julho de 2009

"Dualidade"

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Somos quem somos?
Esta dualidade que me permeia confunde.
Difunde, margeia, semeia caos, candeia
Sem luz, não conduz, contunde, mareia.
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Fomos quem somos?
Tempo, areia me enterra ou aterra,
me apoia ou me prende,
me tolhe ou distende,
me cala ou me berra.
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Calor e frio, vazio, completo
carente, repleto, sonhador, concreto.
Dualidade, maldade, fiel sem balança,
andança, estagnação, mansidão, pujança.
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Metade de mim arde, a outra congela.
Metade de mim é vida, a outra mazela.
Metade de mim irrompe, a outra afunda.
Metade de mim é glória, a outra imunda.
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Seremos quem fomos?
Somos quem somos?
Dualidade, perversidade ou caridade?
Torvelinho, remanso, ação ou descanso.
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Não sei! Se alguém sabe me conte.
Mas conte de manso.
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Jorge Reigada
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quinta-feira, 2 de julho de 2009

"Um Passarinho"

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Todos dizem que estranho passarinho
sempre às tardes, litúrgico e iterado,
explora serra, rio, bosque, prado...
E volta entristecido ao mesmo ninho.
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Por que nunca o encontrei em meu caminho,
ele que também vive molestado
pela memória de um amor finado,
neste fado contrário e tão mesquinho?
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Abro a porta e olho para o azul distante...
Porém, nem pipas vejo em leve encanto,
nem o risco de um raio nesse instante...
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Então percebo quem adeja à toa,
é o meu sofrido coração em pranto,
que esse amor não esquece... teima... e voa...
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Reginaldo Costa de Albuquerque
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quarta-feira, 1 de julho de 2009

"Quanto Eu Te Sonhava"

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Quando eu ainda te sonhava
sem saber a cor dos teus cabelos
ou o brilho azul céu do teu olhar
eras um sonho todo verde de algas
com gaivotas mergulhando na preamar
Eras sonho...ou eras mar ?
Não tinha contorno tua face de sombras
nem tua boca de espuma onde fiquei
beijando a areia
a inventar-te na manhã clara de abril.
Ah...quando eu ainda te sonhava
era teu gosto o sal na minha boca
e meu era o sorriso em tua face...
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. £una

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