domingo, 31 de janeiro de 2010

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Senhor, como é possível a descrença,
imaginar, sequer, que ao fim da Escada
se encontre após esta ansiedade imensa
uma porta fechada
e mais nada?

Fernanda de Castro

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sábado, 30 de janeiro de 2010

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Uma poesia ártica,
claro, é isso que eu desejo.
Uma prática pálida,
três versos de gelo.
Uma frase-superfície
onde vida-frase alguma
não seja mais possível.
Frase, não, Nenhuma.
Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo,
um piscar do espírito,
a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?)
Sim, inverno, estamos vivos.

Paulo Leminsk

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sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

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Não me pisem,
já não danço —
o melhor que faço
é quando descanso.
Não me louvem,
estou cansado —
o melhor que escrevo
é quando apago.

Casimiro de Brito
Intensidades

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quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

"O Sonho Comanda a Vida"

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Eles não sabem,
nem sonham,
que o sonho
comanda a vida.
Que sempre
que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos
de uma criança...
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António Gedeão

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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

"Flora"

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(Ao Gilberto Beltrão)
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Adolphe William Bouguereau
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Ontem, eu me encontrei contigo, ó primavera,
Os lábios a sorrir, como uma flor vermelha,
Tu trazias na mão a clássica corbelha,
E na fronte ideal uma coroa d'hera.

Em derredor de ti, loucamente, passava
Um turbilhão febril de raparigas, quase
Nuas, veladas só por um sendal de gaze,
Mais leve do que o som que Zéfiro soprava...

Emiliano Perneta

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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

"Dentro sem Fora"

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fotografia Gabina
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A vida está
dentro da vida
em si mesma circunscrita
sem saída.

Nenhum riso
nem soluço
rompe
a barreira de barulhos.

A vasão
é para o nada.

Por conseguinte
não vasa.

Ferreira Gullar
In Barulhos

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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

imagem daqui
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Um poema beliscou-me
e passou
tão de súbito
que não tive tempo
de capturá-lo.

Desde então trago
esta página em branco
no meu olhar.

Aleilton Fonseca

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domingo, 24 de janeiro de 2010

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Soluça a natureza!
Oh! Soluça a natureza
sem lágrimas pra chorar!
Já não existe certeza
onde a vida vai parar...
O pássaro, com candideza
a água está a procurar...
Oh! Soluça a natureza
sem lágrimas pra chorar!
Já não encontra a pureza
nas águas que correm pro mar
Já não tem mais a certeza
de uma dia a encontrar!
Oh! Soluça a natureza!

Edir Pina de Barros

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sábado, 23 de janeiro de 2010

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- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade onipotente
Nem me ouvia.

- Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.

Miguel Torga

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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

"Cova Rasa"

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Quando a manhã chegou
eu me quis sem rosto;
apenas cabelos,
testa e orelhas.

Pela hora do almoço
eu me quis sem cabeça;
apenas roupas,
tronco e membros.

Quando adormeci
eu me quis sem nada;
apenas solidão,
cova rasa e silêncios.

Oswaldo Antônio Begiato

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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

"Caixa de Ferramentas"

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Dúzias de pregos soltos 4 alfinetes de fralda
1 rolo de fita isolante que nem teve serventia
6 retratos 3x4 (fora o do relicário de prata)

1 chave de fenda 1 calcinha de renda
1 clave de lua pena de passarinho
asa de borboleta raiozinho de sol

caixinhas de música conchinhas
a coleção de pedras 1 colar de pérolas
aquele salto alto que nunca foi lá
missal de madrepérola são jorge no santinho

assassinando o dragão com 1 canivete suíço
9 segredos sufocados nos laços da fita amarela
1 soluço a última ilusão
todos os beijos que eu dei todas as bugigangas
[que juntei]
todos os parafusos que perdi

(quase esquecido de lado escondido entre rimas
[rasgadas]
e a flor no mal-me-quer 1 martelo torto e
[sem cabo]
de tanto bater na saudade)

Silvana Guimarães

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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

"Dual"

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imagem by Adolphe William Bouguereau
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Sim,
o amor é isto tudo.
Uma alegria, um tormento.
Dois pássaros vivos
dentro do pensamento.

O bem e o mal não se apertam.
Sempre voam na mesma medida.
Mas não há árvores
no deserto
de cabeças resolvidas.

Maria Lúcia Sequeira
In Asas ao Anoitecer

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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

"Recado aos Corvos"

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Levai tudo:
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Deixai só a incomensurável
memória das labaredas

Antonio Manoel Pires Cabral

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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

"Cegueira"

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fotografia de Maria Martins
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Dança comigo, dama da noite,
inebria-me do sono do mato,
ali conspiro com os trevos
à boca miúda,
ali a estridência dos grilos
eu acato.

Fernando Campanella

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domingo, 17 de janeiro de 2010

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Hoje vou para o mercado velho expor o meu corpo em pedaços,
cada um bem identificado por uma etiqueta com nome e valor.
Tenho esperança de realizar uma boa transação. Há tanta coisa lá
para trocar pelos pedaços ainda em bom estado deste meu corpo.
Inteiro não tem muita utilidade, mas assim a retalho é precioso,
em particular a mão direita o crânio o sexo o coração.
Oxalá ninguém queira comprar por atacado todos os pedaços:
é que não sei onde guardei as instruções de montagem.

Carlos Alberto Machado

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sábado, 16 de janeiro de 2010

"Acordo de Noite"

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Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...


Alberto Caeiro

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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

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Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos.

Ana Cristina Cesar

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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

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Acorde:
Tua ausência
Rasa e condoída, é uma lua
Que bóia distraída
Na poça d'água do meu peito

Julio Meirelles

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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

"Para Nadar"

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Não há quem não feche os olhos
ao cantar a música favorita
Não há quem não feche os olhos ao beijar,
não há quem não feche os olhos ao abraçar
Fechamos os olhos
para garantir a memória da memória
É ali que a vida entra e perdura,
naquela escuridão mínima,
no avesso das pálpebras
Concentramo-nos para segurar a dispersão,
para segurar a barca ao calor do remo
O rosto é uma estrutura perfeita do silêncio.
Os cílios se mexem como pedais da memória
Experimenta-se uma vez mais
aquilo que não era possível
Viver é boiar, recordar é nadar .

Fabrício Carpinejar

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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

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Colhe e leva esta pequena flor, não demores!
Receio muito que ela se incline e desfaleça na poeira.
Talvez ela não encontre lugar na tua grinalda;
honra-a, porém, com um toque dorido da tua mão
e colhe-a.
Receio muito que o dia termine antes que eu o
perceba, e que passe a hora da oferenda.
Embora não seja intensa a sua cor e seja débil
o seu perfume, serve-te assim mesmo desta flor
e colhe-a enquanto é tempo.

R. Tagore

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domingo, 10 de janeiro de 2010

"Os Amigos Infelizes"

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foto daqui
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Andamos nus, apenas revestidos
Da música inocente dos sentidos.

Como nuvens ou pássaros passamos
Entre o arvoredo, sem tocar nos ramos.

No entanto, em nós, o canto é quase mudo.
Nada pedimos. Recusamos tudo.

Nunca para vingar as próprias dores
Tiramos sangue ao mundo ou vida às flores.

E a noite chega! Ao longe, morre o dia...
A Pátria é o Céu. E o Céu, a Poesia...

E há mãos que vêm poisar em nossos ombros
E somos o silêncio dos escombros.

Ó meus irmãos! em todos os países,
Rezai pelos amigos infelizes!

Pedro Homem de Mello

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sábado, 9 de janeiro de 2010

"Salmo do Padeiro"

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Com o pão
se faz
a oração

o pão
ó Pai
é tua palavra

dando aos corpos
a chave
de outros corpos

na reunião
com o pão
também estás

se não estou
fora do pão
e da oração

Armindo Trevisan
in "O Ferreiro Harmonioso"

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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

"Escapismo"

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foto daqui
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Tristezas podem ficar caladas.
É só não puxar por elas.
Enquanto dormem,
abastecemos a barca de sonhos,
aquietamos o rio das indagações.
Quando a tristeza acordar pálida
do pó de seus porões,
é nossa vez de descansar.
O ponteiro do desencontro torna possível
navegar.

Flora Figueiredo
in "Chão de Vento"

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quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

"Barro e Sopro"

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As pessoas
Intensas
Imensas
e densas
São feitas
de barro,
de sopro...

De barro
para que as
sementes
germinem.

De sopro
para que as
sementes
se espalhem.

Tudo mais
é pedra,
é vácuo.

Oswaldo Antonio Begiato

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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

"Olhos"

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foto daqui
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Dois pássaros voam,
de um leve azul inebriados.
De onde os vejo
Só há o espelho quieto de um lago.
E já não sei o que é mais visível
se o que enxergo, as aves,
com meus olhos,
ou se aquelas flautas moventes
sincronizadas,
que sonho
com os olhos quietos do lago.
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Fernando Campanella

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terça-feira, 5 de janeiro de 2010

"Plano"

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Trabalho o poema sobre uma hipótese:
o amor que se despeja no copo da vida, até meio,
como se o pudéssemos beber de um trago.
No fundo, como o vinho turvo,
deixa um gosto amargo na boca.
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Pergunto onde está a transparência do vidro,
a pureza do líquido inicial,
a energia de quem procura esvaziar a garrafa;
e a resposta são estes cacos que nos cortam as mãos,
a mesa da alma suja de restos,
palavras espalhadas num cansaço de sentidos.
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Volto, então, à primeira hipótese. O amor.
Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Nuno Júdice

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segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

"Bloody Marry"

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Na boca escarlate da noite,
passou-se a eternidade,
no pequeno tempo,
no úmido tempo daquele beijo!

Nas veias o sangue disparou,
uma manada de tintos corcéis
galopando desordenadamente,
batendo-se vermelhos,
contras as paredes das artérias!

Quanta vida em seu corpo,
no inebriante e rubro instante

...daquele beijo!

Lenise Marques

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