Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

sábado, 28 de dezembro de 2019

Folhetim



Imagem da Web

Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim

E, se tiveres renda
Aceito uma prenda
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim

E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia luz
E te farei, vaidoso, supor
Que és o maior e que me possuis

Mas na manhã seguinte
Não conta até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada do meu folhetim

Chico Buarque




Esses moços



Walter Photography

Esses moços, pobres moços
Ah! Se soubessem o que eu sei
Não amavam, não passavam
Aquilo que já passei
Por meu olhos, por meus sonhos
Por meu sangue, tudo enfim
É que peço
A esses moços
Que acreditem em mim

Se eles julgam que a um lindo futuro
Só o amor nesta vida conduz
Saibam que deixam o céu por ser escuro
E vão ao inferno à procura de luz
Eu também tive nos meus belos dias
Essa mania e muito me custou
Pois só as mágoas que trago hoje em dia
E estas rugas o amor me deixou
Lupicínio Rodrigues




Bom dia



Imagem da Web

Amanheceu, que surpresa
me reservava a tristeza
nessa manhã muito fria.
Houve algo de anormal:
tua voz habitual
não ouvi dizer
bom dia.

Teu travesseiro vazio
provocou-me um arrepio
levantei-me sem demora.
E a ausência dos teus pertences
me disse - não te convences? -
paciência, ele foi embora.

Nem sequer no apartamento
deixaste um eco, um alento
da tua voz tão querida.
E eu concluí, num repente,
que o amor é simplesmente
o ridículo da vida

Num recurso derradeiro
corri até o banheiro
pra te encontrar - que ironia! -
e que erro tu cometeste
na toalha que esqueceste
estava escrito bom dia

 Herivelto Martins




Todo azul do mar

 
Imagem via Pinterest

Foi assim, como ver o mar
A primeira vez que meus olhos se viram no seu olhar
Não tive a intenção de me apaixonar
Mera distração e já era momento de se gostar

Quando eu dei por mim nem tentei fugir
Do visgo que me prendeu dentro do seu olhar
Quando eu mergulhei no azul do mar
Sabia que era amor e vinha pra ficar

Daria pra pintar todo azul do céu
Dava pra encher o universo da vida que eu quis pra mim

Tudo que eu fiz foi me confessar
Escravo do seu amor, livre pra amar
Quando eu mergulhei fundo nesse olhar
Fui dono do mar azul, de todo azul do mar

Foi assim, como ver o mar
Foi a primeira vez que eu vi o mar
Daria pra beber todo azul do mar
Onda que vem azul, todo azul do mar
Foi a primeira vez no azul do mar
Daria pra beber todo azul do mar
Foi quando mergulhei no azul do mar

Flávio Venturini



 

Alguém como tu



 
 Rimel Neffati Photography

Alguém como tu
Assim como tu, eu preciso encontrar
Alguém sempre meu
De olhar como o teu
Que me faça sonhar

Amores eu sei
Na vida eu achei e perdi
Mas nunca ninguém desejei
Como desejo a ti

Se tudo acabou
Se o amor já passou
Há de o sonho ficar
Sozinho estarei
E alguém eu irei procurar

Eu sei que outro amor posso ter
E um novo romance viver
Mas sei que também
Assim como tu
Mais ninguém
José Maria de Abreu




quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Manhã



Imagem da Web (desconheço a autoria)

 Abriu as venezianas. Pendurou os lençóis no peitoril.
Mirou o dia.
Um pássaro fixou-a nos olhos. Estou só, murmurou.
Estou viva. Entrou no quarto. O espelho é também uma janela.
Se saltar dele, cairei nos meus próprios braços.

Yannis Ritsos




Abstrato

  

Arte - Beijo, de Katia Almeida

eu nunca beijei um poema.

no entanto ele está aqui
roçando leve minha
boca

nas horas dos
mais
doídos
silêncios

Mariana Botelho




Desenha com a ponta dos dedos


Imagem da Web 

desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exatas do meu rosto
as rugas, os sinais, a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor
e diz-me o que de mim amaste
noutros corpos, noutras camas, noutra pele
prometo que não choro
mas repete as palavras um dia minhas
que sem querer misturaste nas tuas
e levaste com as chaves de casa e os documentos do carro
e largaste sobre a mesa com o copo de gim a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste.

Alice Vieira
in Dois corpos tombando na água



Poema de amor

 
Arte fotográfica de Alicia Savage

Se te pedirem, amor, se te pedirem
que contes a velha história
da nau que partiu
e se perdeu,
não contes, amor, não contes
que o mar és tu
e a nau sou eu.


Fernando Namora




É sempre uma história de amor



Fotografia minha, Praia do Dentinho, em Praia Seca- Araruama-RJ

é sempre
uma história de amor:

a árvore
que se afeiçoa ao pássaro

o sol
que se liga à água

os olhos
que se prendem ao mar

Gil T. Sousa




O teu lugar é onde olhos te olham

 
 Imagem: linnéa jacobson on Flickr

O teu lugar é
onde olhos te olham.
Tu nasces
onde os olhos se encontram.

Suspensa por um chamar,
sempre a mesma voz,
parece haver só uma
com que todos chamam.

Caías,
mas não cais.
Olhos te prendem.

Tu existes
porque olhos te querem,
olham-te e dizem
que tu existes.

Hilde Domin





Quando fores velha


Óleo sobre painel: Reading by the Fire, de Frederick Daniel Hardy

Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;
Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;
Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.

W.B. Yeats
Tradução de José Agostinho Baptista




A um ausente


Arte Brooke Shaden

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,

enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.


Carlos Drummond de Andrade





Pastelaria

 
O ilustrador: http://neilwebb.net/

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny





Extingue os meus olhos



Imagem: © Fabio Stachi | www.fabiostachi.com

Extingue os meus olhos: ainda te posso ver,
fecha-me os ouvidos: ainda te posso ouvir,
e sem pés ao teu encontro posso ir,
e até sem boca teu nome hei-de dizer.
Quebra-me os braços, posso abarcar-te
com o coração como se estendesse a mão,
pára-me o coração, o cérebro latejará,
e se ao meu cérebro deitares fogo então,
o meu sangue em mim te levará.

Rainer Maria Rilke
in O Livro de Horas




Um dia talvez faça sentido a tua fuga

 
Arte de Yuri Klapouh

Um dia talvez faça sentido a tua fuga urgente e fria
pela calada do silêncio.
Só então perdoarei o tempo
pela dor de não te ter tido
nem ter sabido de cor.

Podias ter sido um barco
a navegar no mesmo ritmo das ondas,
mas não. Quiseste ser vento contrário...

Mas tudo tem duas faces.
A tristeza é só a outra face da alegria
tal como a morte é só a outra face da vida.
Este amor tem duas faces: nós...
e nós somos apenas tu e eu,
o desencontro na volta lenta da vida
o reencontro além do tempo.

Logo chegará o dia
em que o teu espaço será o meu espaço
e o teu tempo será o meu tempo
e jamais haverá sinais a apontar destinos
proibidos.
Seremos apenas nós,
com a certeza de um amor sobrevivente
na memória longínqua do olhar.
E será pelo olhar que nos reconheceremos...

Hoje eu sei que não vou morrer por não te ter,
porque um dia
atravessarei o portão desconhecido
e, ainda que tu não saibas,
levar-te-ei comigo...

e se não posso ter-te aqui,
ter-te-ei além
onde os barcos navegam sem vento...

ainda que não te tenha nunca.

Maria José Quintela



Encontro



Arte de Anne Siems

Era uma dessas mulheres que não se usam mais.
Vestes de trevas e vidrilhos.
Cabeleira trágica.
Olheiras suspeitas.
O grito horizontal da boca surgiu da noite.
Sumiu pela última porta do poema.

Mario Quintana
In Esconderijos do Tempo



 


Tela



Imagem via Pinterest

Branco
inaudível
palavra

rosa
decepada
do vermelho

carne
na tinta
(trans) muda

sóis à boca
em silêncios
de moldura

Raul Macedo





Mudo convite


Arte fotográfica de Twig Capra

Há palavras que vestem o seu corpo
tecem fugas:

Sangue.
Carne.
Mundo.

E há palavras que de tão silenciosas
deitam nuas
 
Raul Macedo


De ilhas

 
Arte de Gabriel Pacheco

De ilhas
sei cada silêncio
acerca do que sou

há cerca feita de vento
difícil fincar os pés
quando se é asa

que se faz vela de navegar
e parte
para além de dogmas

há um oceano suspenso
arrebentando nas paredes
de minhas artérias

esse mar que me navega
inventa territórios mais reais que o chão
(que engole a vida com sua bruta poesia)

eu quero o despertar da alma sem nenhum alarme
sem pressa
ser a presa

e a fome lenta que aprecia a boca
o mastigar do alimento
quero transformar o espírito (do tempo)

para além da matéria
ser etérea
e do Todo fazer meu toldo

uma casa e um telhado de estrelas
uma aldeia entoando um cântico
evocando o deus que sou.

eu quero Soul no blues do fim do dia.

Laryssa Costa




O que verdadeiramente me dói não são as palavras

 
 Arte de Gustav Klimt
 
O que verdadeiramente me dói não são as palavras
que nestes anos todos ficaram por dizer
arrumadas entre os medos que não gritamos juntos
e os sonhos que não transpirei na tua pele

o que verdadeiramente me dói são os silêncios
que nunca habitamos do mesmo lado
porque o silêncio só pode ser partilhado
com aqueles que amamos até à loucura.
...

Alice Vieira
in "Dois Corpos Tombando na Água" 



 


quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Nem a primavera



Arte de Michael Peck

as palavras não saem mais
nem da minha pele
das feridas abertas
dos meus dedos
dos meus olhos cansados
ou do amor que perdi

muito menos da primavera
que chegou com força
pura poesia

ficaram presas talvez para sempre
no abismo inatingível de mim

Adriana Godoy



Se eu fosse uma cor

    
Fotografia Revista Vogue
 
Se eu fosse uma cor, seria vermelho
vibrante
sangue
flor no cabelo
personagem de Almodovar
ousadia nas unhas
batom, bourbon, marcas na pele sem roupa, seda, cigana, pimenta, louca.

Renata Fagundes




Se o tempo

 
Fotografia de Sebastian Łuczywo

Se o tempo
fosse
uma flor, o seu
perfume
seria
esta luz
escorrendo
pelas escarpas
do dia.

Albano Martins




Das formas de chorar



 
Arte de Nazar Bilik 

Amanhã começo
A dieta do riso
O estudo do idioma
Do silêncio

Hoje é lágrima
Na boca
Palavra saltando
Dos olhos.

Adriane Garcia




terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Sombra



Fotografia de Chaerul Umam

Eis, então, que, de repente,
vi como ela se perdia:
um pouco quando falava,
ou quando nada dizia,

outro pouco quando andava,
ou quando apenas sorria,
ou quando só me fitava,
ou quando se ia, se ia.

E ia-se assim, mais e mais,
perdendo-se, dia a dia,
ano a ano, a cada sonho,
amor ou melancolia.

Perdia-se… Mas uma sombra
(e ninguém dela sabia)
ia colhendo o perfume
em que ela se ia, se ia.

Sombra que, vaga na sombra,
docemente recolhia,
no tempo, no sonho, o aroma
em que ela se desfazia.

E se desfez de tal modo,
tanto se perdeu, que, enfim,
se um dia quiser se achar,
só se encontrará em mim.

Ruy Espinheira Filho


Inverno de Tinhorão


 
Arte de Irene Wijnmaalen

se a morte for lenta
cavalgarei o esplendor
não se tingirá de sangue a mortalha
o retalho de sarja enxugará a água
do cristal

do amor
desenhei contornos
sem perceber o que por pedaços
abandonei
trilha dissonante
minha ausência, o permanente
esquecimento

mas cavalgarei o esplendor
sem resistência
porque do outro cessa o desejo

se a morte for instantânea
egoísta e única
cumprirá o vaticínio de me ter imposto
a Vida.

Lucia De Moura Chamma
in Porão das Ervas





,

Distância

  
Ilustração Christian Schloe
...

onde me ficaste
raiz semente pedra

coração, onde?

em que ponte, que ponto
de passagem

em que subúrbio
em que macia pedra
em que chão?

onde me ficaste
raiz

da raiz mais funda, corpo
[em macia luz, meia escuridão]

em que metade, em que margem
onde,

em que linha da mão?

breve Leonardo




Pretérito leito



Fotografia de Fernando Campanella

erigir do tempo
pretérito leito
adoecer de lembrar
quedar-se em silêncio
de surda ausência

velar no céu da boca
estrelas mortas
de negar auroras

Wanda Monteiro




sábado, 14 de dezembro de 2019

To be a rose


 Imagens via Pinterest

não brota mais nenhuma rosa nesta terra.
ninguém mais sabe o que significa uma rosa.
ao nome da cor, rosa, se perguntam:
"rosa, por que esse nome ?"
ao que alguém responde:
"talvez do espanhol rocío, orvalho".
ao que alguém retruca:
"por que orvalho, se mais se assemelha ao céu do crespúsculo?"
ao que alguém deduz:
"certamente do italiano rosso, por que vermelho, insignificante verme".
e todos acham tudo muito bem .
e esquecem a dúvida:
poeira sob o tapete.
não, não brota mais nenhuma rosa nesta terra, ninguém mais sabe o que é uma rosa.
e o vermelho é frio.
uma rosa, uma rosa, uma rosa rosa,
that is the question não mais importa.

Fabíola Lacerda




Acontecia


Fotografia de Gustave Le Gray "Mediterranean with Mount Agde" |1857| Metropolitan Museum of Art | Public Domain

o esboço, o esboço aparente, a cor baça
de rascunho e matriz

na folha onde se escrevia
a tinta luz, a apara

de espinho na nuvem. Era o corpo inquieto
o vestígio,

era

o horizonte
na linha inacabada.

breve Leonardo






Qual?



Colagem de Eugenia Loli

qual entre tantas mulheres em mim
sobreviverá a esse tempo de angústia?
qual entre tantas saberá o dia certo de dizer sim
e vai deixar as portas abertas?
qual saberá usar as palavras certas
e mesmo assim encontrar o inferno?
qual mulher buscará o prazer
e sentirá o gosto da vida pulsando nas veias quase frias?
qual se vai entregar inteira encher a cara
e não temer a manhã?
qual mulher em mim não terá medo da morte
e saberá que morre todos os dias?
qual vai jogar flores no mar
e sonhar com a deusa perdida nas águas?
só uma saberá a resposta
mas ela já se foi nas palavras
no tempo
no espelho quebrado sem conserto

Adriana Godoy 



Auto-retrato 56



Ilustração de Dennis Auburn

não fomos feitos da terra
saídos das profundezas dos mares
para vivermos juntos

o humano arrasta consigo apenas a sua sombra
esse escuro estreito que o define
a nódoa de um beijo frio

ou noites e noites de amores de plástico
escavando por dentro do outro em busca de um sentido
sem ver que somos só fome e a cicatriz do umbigo

uma ou outra doença prega-nos a uma cama
com tubos a sair dos braços e do rosto
e são ramos secos
da antiga e grande árvore do paraíso desde sempre negado

e onde se lê paraíso
deverá ler-se em perífrase
aquele bem estar de onde somos expulsos a cada dia

Paulo José Miranda


 

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O gato e o pássaro



Arte de Tifenn Python

Uma cidade escuta desolada
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro deixa de cantar
E o gato deixa de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Funerais maravilhosos
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não pára de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Você teria sofrido menos
Só tristeza e saudades

É preciso nunca fazer as coisas pela metade.

Jacques Prévert



Beppo

   

© Foto de Paola Agosti. Jorge Luis Borges e o seu gato Beppo, 1980.

O gato branco e casto se contempla
no luzidio vidro do espelho
e não pode saber que essa brancura
e esses olhos de ouro nunca vistos
antes na casa são sua própria imagem.
Quem lhe dirá que o outro que o observa
é somente um sonho do espelho?
Digo-me que esses gatos harmoniosos,
o de cristal e o de sangue quente,
são simulacros que concede ao tempo
um arquétipo eterno.
....

Jorge Luis Borges





Búzio


Imagem via Pinterest

Trouxeram-me um búzio.

Dentro dele canta
um mar de mapa.
Meu coração
se enche de água
com peixinhos
de sombra e prata.

Trouxeram-me um búzio.

Federico Garcia Lorca



O anjo que tive

  
Imagem via Pinterest

o anjo que tive abandonou o meu altar
não se guardam anjos na gaiola
eu sabia

acendia-lhe velas de cera de abelha
e oferendava-lhe incenso puro
água consagrada
seda e algodão – mas um anjo não precisa de oferendas
eu sabia

vi-o chorar e desperdiçar as asas
acendi mais velas e queimei mais incenso
disse orações
ele continuou a chorar

o altar está vazio
ele deixou-o e ascendeu
ao seu mínimo
mas livre
céu

Frederico Mira George


 

Re-vela



Arte de Darla Teagarden

a alma às vezes
se apaga
como um pequeno abajur
sem luz.

Vanessa Campos Rocha



A física do susto



 "Reflections", Arte de Morgan Weistling

O espelho caiu da parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede meu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
No espelho caído, o meu rosto.

Cassiano Ricardo





Tal como qualquer cidade também nós escondemos

  
Fotografia de Eric Bénier Bürckel

Tal como qualquer cidade
também nós escondemos
turvos itinerários, edifícios arruinados,
escuras vielas de rancor ou desejo,
arrabaldes de medo ou parques para o amor,
cantos em penumbra onde ocultar segredos,
praças que nunca visitamos
e aborrecidos museus onde expor lembranças
que não interessam a ninguém.
A nós
também nos habitam cidadãos terríveis:
funcionários do tédio,
mensageiros de moto levando para muito longe
o pequeno embrulho — primoroso e com laço —
dos remorsos.
Viajantes que passam por nós
com as suas malas a caminho de outros corpos
e sobretudo
transeuntes alheios à nossa própria vontade,
incivis e teimosos;
têm nomes ridículos
tal como os sentimentos amor, rancor ou medo
e especulam — como vulgares comerciantes —
com o preço
por metro quadrado do nosso coração.

Sílvia Ugidos


História de amor



 Imagem via Pinterest

A pena para a deserção
É morte por um pelotão de execução
Poupo-te esse trabalho
junto envio uma pistola.
Carregada com apenas uma bala.
Aperta o gatilho uma vez.
Talvez nada aconteça.
Mas aperta uma segunda vez…
uma terceira…
Vês
Eu sei os jogos que tu gostas

Jim Carroll
traduçao de Maria Sousa


Algumas pessoas vendem o seu sangue

 
 Figura de porcelana by Jessica Harrison  

Algumas pessoas vendem o seu sangue. Tu vendes o teu coração.
Era isso ou a alma.
A parte difícil é tirar a maldita coisa para fora.
Uma espécie de torção. Como abrir uma ostra,
a tua espinha, um pulso,
e depois, upa! Está na tua boca.
Viras-te parcialmente do avesso
como uma anêmona do mar a cuspir um seixo.
Há um “plop” quebrado, o som
de vísceras de peixe a cair num balde.
E ali está, um enorme coágulo vermelho escuro
do passado ainda-vivo, a cintilar inteiro no prato.
Vai passando de mão em mão. É escorregadio. É deixado cair.
Mas também degustado. Muito grosseiro, diz um. Muito salgado.
Muito amargo, diz outro, fazendo uma cara.
Cada um é um gourmet instantâneo,
e tu ficas a ouvir isto tudo
a um canto, como um empregado de mesa recém-contratado,
a tua mão tímida e habilidosa na ferida escondida
no fundo da camisa e peito,
timidamente, sem coração.

Margaret Atwood
(tradução Maria Sousa)



Escrevias pela noite afora


 
 Imagem via Pinterest 

(excerto)
Queria prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo. Pudesse eu propor-te
vida menos igual, outras iguais obrigações.
Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.

Hélder Moura Pereira
in De Novo as Sombras e as Calmas




Sobremesa

 
 Fotografia de Anderson Crepaldi

Quando a melancolia enche o sol, o esvazia do
seu brilho, faz baço o amarelo do rebordo, apaga
os fios de fogo que da sua esfera fulgem, pego
nele e ponho-o na travessa do bolo. Com a faca,
corto-o; e ofereço-te
uma fatia de sol, que levas à boca; e ele volta a brilhar,
iluminando-te os lábios, os olhos,
o rosto. Então, beijo-te: e é como se
tocasse o sol; como se a sua chama me queimasse,
sem doer, ou como se a sua luz entrasse por dentro
de mim, quando a sobremesa
chega ao fim.

Nuno Júdice
em Por dentro do fruto a chuva




segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Olha, as coisas estão cortadas ao meio

 

Arte de Agnolo Bronzino

Olha, as coisas
Estão cortadas ao meio,
De um lado elas
Do outro o seu nome.

Há um vasto espaço entre elas,
Espaço para correr,
Para a vida.

Olha, tu estás cortado ao meio.
De um lado tu,
Do outro o teu nome.

Não sentes às vezes ou no sonho
Ou à margem do sonho,
Que na tua fronte
Assentam outros pensamentos,
Sobre as tuas mãos
Outras mãos?

Só por um instante foste compreendido
Fazendo o teu nome
Atravessar o teu corpo,
De um modo sonoro e doloroso,
Como o badalo de bronze
Através do vazio do sino.

Marin Sorescu

 


Hoje o que nos convém




Fotografia daqui
 
Hoje o que nos convém
é uma certa escuridão
inventada de raiz.

Talvez seja o nosso prêmio,
a meio do caminho, depois
de tantos sobressaltos.

Deixamos entrar no quarto
as mais modestas canções:
quem de dentro de si não sai
vai morrer sem amar ninguém.

Antes uma ameaça, agora
uma simples explicação.
 
Rui Pires Cabral


 

Volta até mim no silêncio da noite

 
Imagem da Web

Volta até mim no silêncio da noite
a tua voz que eu amo, e as tuas palavras
que eu não esqueço. Volta até mim
para que a tua ausência não embacie
o vidro da memória, nem o transforme
no espelho baço dos meus olhos. Volta
com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário
vestido com a mortalha da névoa; e traz
contigo a maré cheia da manhã com que
todos os náufragos sonharam.

Nuno Júdice




Solidões






 
 Arte de Toulouse Lautrec

Eles têm razão
essa felicidade
pelo menos com maiúscula
não existe

ah, mas se existisse com minúscula
seria semelhante à nossa breve
pré-solidão

depois da alegria vem a solidão
depois da plenitude vem a solidão
depois do amor vem a solidão

já sei que é uma pobre deformação
mas o certo é que nesse durável minuto
a gente se sente
só no mundo

sem posses
sem pretextos
sem abraços
sem rancores

sem as coisas que unem ou separam
e nesta única maneira de estar só

a gente sequer tem piedade de si mesmo
os dados objetivos são como segue

há dez centímetros de silêncio
entre tuas mãos e minhas mãos

uma fronteira de palavras não ditas
entre teus lábios e meus lábios

e algo que brilha um pouco triste
entre teus olhos e meus olhos

claro que a solidão não vem sozinha
se a gente olha por sobre o ombro seco
de nossas solidões
vê um longo e compacto impossível

um singelo respeito por terceiros ou quartos
esse percalço de ser boa gente

depois da alegria
depois da plenitude
depois do amor
vem a solidão

está certo
mas
o que virá depois
da solidão

às vezes não me sinto
tão só
se imagino
ou melhor se sei
que além da minha solidão
e da tua
ainda estás aí
mesmo que se perguntando sozinha
o que virá depois
da solidão.

Mário Benedetti





Daquilo que importa

 
Arte de Laura Makabresku

Não importa o prato na mesa,
se ele não te saciar a mais íntima
de todas as fomes.

Não importa a poesia,
se ela não te abrir as janelas da vida
todos os dias.

Não importa a ponte,
se ela só te levar
até o outro lado do rio.

Não importa a palavra,
se ela só te consolar
no meio da rua.

Não importa a vida,
se ela é só armadilha.

Ademir Antonio Bacca




Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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