Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Dobradura


Fosse dobrável
A melancolia
Dela eu faria
Um tsuru
Uma garça
Um grou
Algo que voasse
Pra longe

(Mas garanto
Que choraria:
Gosto tanto de bicho)





segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Fim de um amor


Estamos aqui os dois, serenamente,
Olhando-nos como dois estranhos,
Um mundo de recordações pela frente
E na alma só dor e desenganos.

Separou-nos o rancor e o egoísmo.
E numa noite trágica e escura,
Nós dois abrimos uma abismo
Onde nosso amor fez a sua sepultura.

Dulce Becker

imagem Amanda Cass

O testamento do homem sensato


Quando eu morrer, não faças disparates 
nem fiques a pensar: “Ele era assim...”
Mas senta-te num banco de jardim, 
calmamente comendo chocolates. 

Aceita o que te deixo, o quase nada 
destas palavras que te digo aqui: 
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada. 

Porém, se um dia, só, na tarde em queda, 
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda, 

deixa-a pousar em teu silêncio, leve 
como se apenas fosse imaginada, 
como uma luz, mais que distante, breve.

Carlos Pena Filho 


"Mulher Sentada em um Banco", de Claude Monet 


Apolo


Vens do fundo desta noite
Como uma aurora vibrante
Trazes-me o sol e o tempo

Doces
Como mel a escorrer 
Da memória

Vens do fundo desta noite
E do centro da glória
Lavar-me o olhar
De silêncios e deserto
Desperto
Sou a tua seara em flor
O teu azul do mar
O teu céu 
Sou o Apolo que viaja
Nos teus olhos

Edgardo Xavier

imagem: Google


Saraivada


apresso o passo,
que lá vem o silêncio.

corra:
ele consome
suas melhores preces.

voar é grande
— então voe.

exploda
espalhe
ecoe.

não recolha os cacos de
memória e osso
nem amacie o dorso ferido
dos campos minados.

desfira um golpe
misericordioso
no corpo sem carne
do silêncio.

e com o sangue escorrido
escreva um livro.

Iara Maria Carvalho


Imagem: Google


Lassidão



A couve ao sol,
o boi ao chão,
dormem o sono
lento (o inverno)
que dormiriam
folhas de lírios,
fios de larvas,
achas de lenha,
pedras, rios.

(E a couve mais,
que presa ao chão,
como nasceu,
pouco se move
em benefício
de seu verdume,
seu viço).

Mas sobre a relva,
em meio à tarde,
ou precipício
do sol, sem mais,
quando se enterra,
o olho do boi,
que se revela,
rumina
em lenta espera
o olho da cancela,
que para fora 
se abre e não mais
se fecha.

Júlio Machado

imagem via Deus e eu no sertão/Facebook


Pó & cia.


de vez em quando
a poesia
se insinua

para que eu a possua.

depois
arredia
desaparece
como se habitasse
a outra
face
da lua.

Salgado Maranhão


"livro aberto", foto de ra2studio




Bem-aventurados



Bem-aventurados os pintores escorrendo luz
Que se expressam em verde
Azul
Ocre
Cinza
Zarcão!
Bem-aventurados os músicos...
E os bailarinos
E os mímicos
E os matemáticos...
Cada qual na sua expressão!

Só o poeta é que tem de lidar com a ingrata linguagem alheia...

A impura linguagem dos homens!


Mário Quintana

Imagem: Google



Pedra retorcida


Durante algum tempo,
hesitei abrir aquela porta.

O sentido de toda cidade 
estava atado, como um nó,
lá dentro. Talvez fosse
o que jamais procurasse:
o sentido das coisas
explicadas por trás das portas.

Algumas ruas também
hesitei atravessar.
Eram incansáveis e longas,
como as noites brincadas
lá fora, onde tudo mais cabia.

Em verdade,
nada procurava
além de um pequeno gole
guardado ou esquecido
por trás daquela porta verde:
sem trancas, maçanetas e levemente arranhada
com a dor de abri-la.

Os olhos esverdeados
acompanhavam a inquietação do vento
se infiltrando pela porta exilada
com quem fala: ó de casa!

(As ruas atravessam o tempo não vencido.)

Aquela porta que hesitei abrir
largou mão de sua fronteira
e deu lugar a janelas
que me assombram pacientes,
até que o frio as feche novamente.

Faz frio por detrás das portas retorcidas;
o outro nos decifra,
enquanto se esconde.

João de Moraes Filho

"Porta Vintage", de Ana Camila Vieira



Hoje eu quis rasgar



hoje eu quis rasgar todos os versos 
que escrevi pra você

mas as folhas tinham mais
força que eu

e me deixaram em pedacinhos

Marina Rabelo 

Imagem: Google

Retrato de familia


Este retrato de família
está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.

Nas mãos dos tios não se percebem
as viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa e amarela,
sem memórias da monarquia.

Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranqüilo,
usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.

O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
é um oceano de névoa.

No semicírculo das cadeiras
nota-se certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
mas sem barulho: é um retrato.

Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
outra, sorrindo, se propõe.

Esses estranhos assentados,
meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
numa sala que se abre pouco.

Ficaram traços da família
perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo é cheio de surpresas.

A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens.
Estão ali voluntariamente,
saberiam - se preciso - voar.

Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do salão,
ir morar no fundo dos móveis
ou no bolso de velhos coletes.

A casa tem muitas gavetas
e papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
quando a matéria se aborrece?

O retrato não me responde.
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam

os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha ideia de família

viajando através da carne.

Carlos Drummond de Andrade

"A Familia", de Tarsila do Amaral



Origem


Eu queria mesmo, ó grande mar azul
que conhecesses o meu cabelo solto ao vento,
tão parecido com o teu pensamento
livre, crescendo sempre...
Eu fazia questão que ouvisses o meu soluço abafado
como de tuas ondas,
que mal põem à tona a cabeça o vento esmaga.
Eu queria, afinal, que me visses despida
com a tua correnteza que passa
sem pudor ou malícia - transparente.
Tu reconhecerias
no contorno transluzente do meu corpo
a desordem ritmada da tua carícia que minha mãe bebeu
no dia em que se banhou nas tuas espumas,
quase ao me dar à luz,
e mergulhou, afinal, sondando-te a profundidade,
onde encontrou minh'alma!

Adalcinda Camarão

Arte de Ana Luisa Kaminski

Semelhanças


Somos a mistura proibida 
por termos a essência parecida, 
por pertencermos ao mesmo pecado 
e nos confundirmos quando postos lado a lado.
Mas, polos positivos que se contatados queimarão o que é direito e se desmancharão.
Eletrocutados. 
Números primos de perfeito resultado.
Somos só tendência, programação.
E esses desejos não resolvidos, 
safados, 
pulsantes, 
bandidos 
vão se amadurando conosco a cada instante 
só nos tornando cada vez mais parecidos.

Flora Figueiredo

Imagem disponível em Pinterest.com, sem autoria definida

Para dentro


como águas que jorram
para dentro

dei para pisar
o rangido dos ventos

dei para virar
em volta dos passos

dei para lavrar a veia
em que piso

dei para revolver
os ossos

Vera Lúcia de Oliveira

Arte de Gemma Anton


Rio Verde


Para melhor compor as madrugadas 
também os galos acordavam cedo. 
O vento ao passar pela varanda
contava à folhagem um segredo. 

A hora era imensa e tão pouca 
ó rastro da manhã que já desanda 
no tempo, despetalando sim cada 
palavra frágil flor de nossa boca.

Os colibris voavam bailarinos 
sobre as sépalas verdes do futuro.
A brisa prenuncia assim os finos 

dedos da chuva fria sobre o muro. 
Então o relógio para, a vida zera.
Desfaz-se a neblina de quimera.

Lenilde Freitas 

Fotografia de Estrada de Morro Grande, Araruama-RJ, de Dalva Nascimento

Quirera


a palavra
a paixão admitida
o desejo sublimado

tudo tão pouco
e tanto

a lembrança
a falta
a espera

tudo tanto e
tão pouco

delicadezas
transgressão
suor frio

a alma em estado de poesia

Rosana Chrispim

Foto: Google

QUIRERA, no dicionário: fragmentos mais grossos de qualquer substância pulverizada ou arenosa, e que não passa pelas malhas da peneira.

Multiplicação dos peixes



Súbito
uma rede de pescador e toda uma população piscosa
pulula entre o xadrez da malha
e o das escamas, numa só escumalha.

Nunca tanto xis de tanto peixe.

Um deles, com a cauda em repuxo,
se conserva vivo por mais tempo, ao sol.

Vivia, há um minuto,
dentro d'água.

Movendo-se

livre e belo

(e esse minuto trêmulo ainda lhe cintila
no dorso, ainda molhado).

Cassiano Ricardo

Pintura de Manuel Soares

Deus de violencia



Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos
Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos
Doloridos como fagulhas de carvão aceso

Corpos disformes, uns panos sujos,
Rasgados e sem cor, dependurados
Homens de enorme ventre bojudo
Mulheres com trouxas caídas para o lado

Pançudas, carregando ao colo um garoto
Choramingando, remelento
Mocinhas de peito duro e vestido roto
Velhas trôpegas marcadas pelo tempo

Olhos de catarata e pés informes
Aos velhos cegos agarradas
Pés inchados enormes
Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas

No rumor monótono das alparcatas
Há uma pausa, cai no pó
A mulher que carrega uma lata
De água! Só há umas gotas — Dá uma só

Não vai arribar. É melhor o marido
E os filhos ficarem. Nós vamos andando
Temos muito que andar neste chão batido
As secas vão a morte semeando.

Cândido Portinari

"Os Retirantes", de Cândido Portinari


Lua de março



A lua está despida.
O vento despiu a lua.
O vento arrancou ao corpo da lua
As suas vestes de nuvens.
E agora ela está nua,
Inteiramente nua.

Mas já não coras,
Ó lua impudica?
Pois tu não sabes
Que não é bonito estar nua?

Langston Hughes
tradução de Manuel Bandeira

Imagem: Google

Vale


A rede presa entre dois morros
uma altura que não meço em palmos
balanço com pés e cabeça pendurados
equilibrando o frio tenso no estômago
meus cabelos não alcançam o chão
são os cílios que varrem a vegetação
quero dormir ali e ter daqueles sonhos
de vertigem em que se cai da cama
como quem cai no precipício.

Lara Amaral


"Among the Sierra Nevada", de Albert Bierstradt


Competição



O mar é belo.
Muito mais belo é ver um barco
no mar.

O pássaro é belo.
Muito mais belo é hoje o homem
voar.

A lua é bela.
Muito mais bela é uma viagem
lunar.

Belo é o abismo.
Muito mais belo o arco da ponte
no ar.

A onda é bela.
Muito mais belo é uma mulher
nadar.

Bela é a montanha.
Mais belo é o túnel para alguém
passar.

Bela é a nuvem.
Mais belo é vê-la de um último
andar.

Belo é o azul.
Mais belo o que Cézanne soube
pintar.

Porém mais belo
que o de Cézanne, o azul do teu
olhar.

O mar é belo.
Muito mais belo é ver um barco
no mar. 

Cassiano Ricardo

Pintura a óleo, sem autoria definida, disponível no site depositphotos.com


domingo, 23 de setembro de 2018

Reversos da vida


Um homem chorando
Amores desfeitos
As flores murchando
Só mágoas no peito
Um povo sem brio
A mão que não cria
Um corpo no cio
E a cama vazia

Um jovem sabendo
De um mal já sem cura
Mil bocas dizendo
Blasfêmias, perjuras
Memórias perdidas
Nigéria sofrida
Um corte nos versos
Reversos da vida

Martinho da Vila

Imagem daqui


Natureza-morta



Na sala fechada ao sol seco do meio-dia
sobre a ingenuidade da faiança portuguesa
os frutos cheiram violentamente e a toalha é fria
e alva na mesa.

Há um gosto áspero de ananases e um brilho fosco
de uvaias flácidas
e um aroma adstringente de cajus, de pálidas
carambolas de âmbar desbotado e um estalo oco
de jabuticabas de polpa esticada e um fogo
bravo de tangerinas.

E sobre esse jogo
de cores, gostos e perfumes a sala toma
a transparência abafada de uma redoma.

Guilherme de Almeida

Pintura de Antonio Arena


Alta tensão



eu gosto dos venenos mais lentos
dos cafés mais amargos
das bebidas mais fortes
e tenho
apetites vorazes
uns rapazes
que vejo
passar
eu sonho
os delírios mais soltos
e os gestos mais loucos
que há
e sinto
uns desejos vulgares
navegar por uns mares
de lá
você pode me empurrar pro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.

Bruna Lombardi
em O Perigo do Dragão

Imagem Google



Darkness



A solidão,
essa tempestade,
esse gozo às avessas,
esse jeito de eternidade
que as coisas adquirem mesmo sendo apenas vidro.
Essas cartas ardendo
no estômago das gavetas,
essas plumas
que surgem quando se apagam
as últimas luzes do dia.
Tudo faz a noite mais longa,
Visão de uma sombra
Sobre um berço.
Não há resposta
e o labirinto é o falso,
os lábios são falsos,
somente abismo,
absinto verdadeiro.
O sono,
grande placa de cerâmica,
e o tempo,
demônio a ranger sobre o infinito.

Micheliny Verunschk


Imagem: (Good_Studio/iStock)


Os bens maiores



O que ficou
além do enlace
é o que mais foi
preso pelo gesto.

O que não foi
tocado é o que
deixou sua marca
mais nítida na mão.

A gaiola vazia
é onde habita
o que há de mais belo
em gorjeio e pássaro.

Ruy Espinheira Filho

Imagem: Pinterest.com



Velho cego, choravas quando a tua vida era boa





"Enjoy old age", by boyblankon

Velho cego, choravas quando a tua vida 
era boa, quando possuías nos teus olhos o sol: 
mas se o silêncio já chegou, o que é que esperas, 
o que é que esperas, cego, desta maior dor?

Em teu rincão pareces menino nascido 
sem pés para a terra e sem olhos de mar 
e como os animais dentro da noite cega 
- sem dia e sem crepúsculo - cansas de esperar.

Porque se conheces o caminho que leva 
em dois ou três minutos para a vida nova, 
velho cego, o que esperas, que podes esperar?

E se pela amargura mais dura e destino,
animal velho e cego em caminho e tino,
eu que tenho dois olhos saberei te ensinar.

Pablo Neruda




Mascarada


Você me conhece? 
(Frase dos mascarados de antigamente) 
— Você me conhece? 
— Não conheço não. 
— Ah, como fui bela! 
Tive grandes olhos, 
Que a paixão dos homens 
(Estranha paixão!) 
Fazia maiores... 
Fazia infinitos. 
Diz: não me conheces? 
— Não conheço não. 
— Se eu falava, um mundo 
Irreal se abria 
À tua visão! 
Tu não me escutavas: 
Perdido ficavas 
Na noite sem fundo 
Do que eu te dizia... 
Era a minha fala 
Canto e persuasão... 
Pois não me conheces? 
— Não conheço não. 
— Choraste em meus braços 
— Não me lembro não. 

— Por mim quantas vezes 
O sono perdeste 
E ciúmes atrozes 
Te despedaçaram! 

Por mim quantas vezes 
Quase tu mataste, 
Quase te mataste, 
Quase te mataram! 
Agora me fitas 
E não me conheces? 
— Não conheço não. 
Conheço é que a vida 
É sonho, ilusão. 
Conheço é que a vida, 
A vida é traição. 

Manuel Bandeira

Imagem: wallhere.com


Sombra


De olheiras roxas, roxas, quase pretas, 
De olhos límpidos, doces, languescentes, 
Lagos em calma, pálidos, dormentes 
Onde se debruçassem violetas... 

De mãos esguias, finas hastes quietas, 
Que o vento não baloiça em noites quentes... 
Noturno de Chopin... risos dolentes... 
Versos tristes em sonhos de Poetas... 

Beijo doce de aromas perturbantes... 
Rosal bendito que dá rosas... Dantes 
Esta era eu e eu era a idolatrada!... 

Ah, cinzas mortas! Ah, luz que se apaga! 
Vou sendo, em ti, agora, a sombra vaga 
D’alguém que dobra a curva duma estrada... 

Florbela Espanca


Fotografia de Hanna Seweryn


sábado, 22 de setembro de 2018

Falo de Ti às Pedras das Estradas


Falo de ti às pedras das estradas, 
E ao sol que é louro como o teu olhar, 
Falo ao rio, que desdobra a faiscar, 
Vestidos de princesas e de fadas; 

Falo às gaivotas de asas desdobradas, 
Lembrando lenços brancos a acenar, 
E aos mastros que apunhalam o luar 
Na solidão das noites consteladas; 

Digo os anseios, os sonhos, os desejos 
Donde a tua alma, tonta de vitória, 
Levanta ao céu a torre dos meus beijos! 

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço, 
Sobre os brocados fúlgidos da glória, 
São astros que me tombam do regaço! 

Florbela Espanca

Arte de Antonio Mora



Talvez ninguém procure o fundo de si mesmo



Talvez ninguém procure o fundo de si mesmo
ou porque não existe ou porque é inacessível
A palavra não revela apenas anuncia ou apenas pressente
um espaço sem caminho uma asa comprimida no mármore

Talvez nunca possamos colher mais do que uma simples erva
junto a um muro para preencher o vazio do dia
Assim poderemos esquecer que tudo é surdo
e ocupar um espaço que não pertence ao mundo

O mundo ignora-nos como se os seus caminhos não fossem para nós
mas o poema acaricia o rigor do solo
e alheia-se de tudo que não seja a carne íntima
do seu movimento entre raízes e antenas

Antonio Ramos Rosa
Arte de Antonio Mora


História antiga



Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.
Mas, por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga

"A Fuga para o Egito" de Eugène Alexis Girardet 


Clamor



Esse clamor subindo
das gargantas da noite
como os acordes, graves,
de um órgão

Esse clamor feito um pranto
abafado.
Todavia subindo
e prestes a romper
a treva

Escuta:
não é um cântico
(Já não se ouvem os loucos
que cantavam
na noite)

É talvez uma reza
uma última
súplica

E sobe, sobe
como se
das entranhas da terra

Jayro José Xavier

Imagem daqui

Equação

a questão:
ser ou não

ser
feliz

em demanda
desse cálculo
me fiz

contas e contas
somatórios
vis

até desistir
do inacessível
x

Iacyr Anderson Freitas

imagem em Pinterest.com



quinta-feira, 20 de setembro de 2018


Mais beijos
Devagar... 
outro beijo... ou ainda... 
O teu olhar, misterioso e lento, 
veio desgrenhar 
a cálida tempestade 
que me desvaira o pensamento! 

Mais beijos!... 
Deixa que eu, endoidecida, 
incendeie a tua boca 
e domine a tua vida! 

Sim, amor...
deixa que se alongue mais 
este momento breve!... 
— que o meu desejo subindo 
solte a rubra asa 
e nos leve! 

Judith Teixeira

"O Beijo", de Ana Balegas

Late ilusão



Em noite de lua cheia
geme ao meu lado o meu cão
acabado de chegar
late ilusões ao meu ouvido
e meu sentido
diz que ele veio pra ficar
Mas a vida passa e vira
páginas da folhinha
o que era cheia e domingo
foi minguando em segundas e terças
e meu homem, minha besta
voltou novo e repetido
como se fosse ficar até sexta
três dias de ele chegando de madrugada
Três dias de ele nadando na minha água
Conversas de homem e mulher
beijo na boca
tirar a roupa
novos latidos de ilusão no meu duvido
meu homem partiu na derradeira manhã
todo agradecido
dos momentos de amor que uivou comigo
eu fiquei lua sozinha no céu com aquela saudade amarela
e ele na terra cantando latindo partindo
uivando pra ela.

Elisa Lucinda

Supermoon rises over this road to nowhere in eastern South Dakota. By Aron J. Groen




Luz de vela
revela
a chama
que dança

a lágrima
que rola

a parafina
que se espalha

Luz de vela
revela
a letra
que oscila

a vista
que vacila

a figura
que forma

Luz de vela
revela
a pessoa
cansada

a janela
aberta

a página
amarela

A vela...
... dá vida,
a noite deserta
da alma inquieta.

AjAraujo

Riley Candle Light 4 - de kmweisbe


Café da manhã


Pôs café
na xícara
Pôs leite
na xícara com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu
debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei. 

Jacques Prévert 
Tradução: Silviano Santiago


Imagem Google


Que lhe resta, coitada, 
à senhora de idade?
Resta-lhe pouco ou nada,
porém resta-lhe tudo:

uma grande saudade,
um sofrimento mudo 
que é reserva e pudor,

às vezes uma flor,
e a sua dignidade.

Fernanda de Castro

"Care", de Josephine Müntz-Adams (1862-1949)


Devolve



Mandaste as velhas cartas comovidas,
Que na febre do amor te enviei;
Mandaste o que ficou de duas vidas:
O romance, uma dor que provei...
Mandaste tudo, porém,
Falta o melhor que te dei:

Devolve toda a tranquilidade
Toda a felicidade
Que eu te dei e que perdi
Devolve todos os sonhos loucos
Que eu construí aos poucos
E te ofereci
Devolve, eu peço, por favor
Aquele imenso amor
Que nos teus braços esqueci
Devolve, que eu te devolvo ainda
Esta saudade infinda
Que eu tenho de ti

Mario Lago

Imagem Google


Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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