Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Jogue os dados

Rita Hayworth e Glenn Ford, no filme "Gilda"

se você for tentar,
vá até o fim.
não existe nenhuma outra sensação
parecida.
você ficará a sós com os
deuses
e as noites se farão em chamas com o
fogo.
faça, faça, faça.
faça.
até o fim
até o fim.
você conduzirá a vida direto à
risada perfeita, é
a única batalha
pela qual vale a pena lutar.

Charles Bukowski




Sutura mínima

Arte conceitual de Dan Cretu

Inspiro através da máscara
bandagem de um algodão
parco, quase roto
tão antigo
a desfazer-se entre dedos

Assim como meu corpo
nu e imperfeito
a casear-se entre remendos

Lucia De Moura Chamma





Mesmo muito tempo após a minha morte



Escultura "O Impossível", de Maria Martins e "Étant Donnés", de Marcel Duchamp

Mesmo muito tempo após a minha morte
Muito tempo após a tua morte
Quero te torturar.
Como uma serpente de fogo,
quero que o meu pensamento
enrole-se no teu corpo sem queimar.

Quero te ver perdido,
asfixiado, perambulando
pela névoa sombria dos meus desejos.

Para ti, desejo longas noites insones,
repletas do tamborilar estridente de tempestades
distantes, invisíveis, desconhecidas.

E no fim, quero que te paralise
toda a nostalgia da minha presença.

Maria Martins
(escultora brasileira, paixão e amante de Marcel Duchamp,
escreveu esse poema por volta de 1945.)




Poema XXI

Fotografia de Pillery Teesalu "Imperfect Reflection"

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...

Alberto Caieiro
in "O Guardador de Rebanhos"




 

Três coisas


Imagem via Pinterest

Não consigo entender
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo é muito comprido
A morte não tem sentido
Teu olhar me põe perdido

Não consigo medir
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo, quando é que cessa?
A morte, quando começa?
Teu olhar, quando se expressa?

Muito medo tenho
Do tempo
Da morte
De teu olhar

O tempo levanta o muro.
A morte será o escuro?
Em teu olhar me procuro.

Paulo Mendes Campos




Eu durmo comigo



"Cymon e Iphigenia" (detalhe) -  arte de Frederic Leighton

Eu durmo comigo
deitada de bruços eu durmo comigo
virada prá direita eu durmo comigo

Eu durmo comigo abraçada comigo
não há noite tão longa em que
não durma comigo
como um trovador agarrado ao alaúde
eu durmo comigo

Eu durmo comigo
debaixo da noite estrelada
eu durmo comigo
enquanto os outros fazem aniversário

Eu durmo comigo às vezes de óculos
e mesmo no escuro sei que
estou dormindo comigo
e quem quiser dormir comigo
vai ter que dormir ao lado.

Angélica Freitas
in Um Útero é do Tamanho de Um Punho



quinta-feira, 30 de julho de 2020

Quarto de costura

Fotografia de Muga Miyahara

Minha mãe me ensinou a costurar
meu pai me ensinou a escrever,
escrevo as costuras dela
e costuro as palavras dele.
Costuro na máquina de escrever
escrevo na máquina de costura
cada babado e vírgula,
cada bainha e dois pontos
franzidos ou nervurados.
Minha caixa de linhas é colorida
minha memória é de ponto de sombra,
atrás, cheio de histórias.
Escrevendo costuro cada ponto e desponto,
costurando escrevo minha roupa
e minha lembrança,
vivendo me lembro das palavras do meu pai
e das mãos da minha mãe.
Sendo sou matiz bordado
no entremeio dos meus pais.

Wania Amarante
in Quarto de Costura



Ah se pelo menos eu te amasse menos

Arte de Anita Burnaz

Ah se pelo menos
eu te amasse menos
tudo era ais fácil
os dias mais amenos
folhas de dentro do alface

mas não
tinha que ser entre nós
esse fogo
esse ferro
essa pedreira
extremos
chamando extremos na distância

Paulo Leminski
in Toda Poesia



Plano de evasão

Arte de Gabriel Isack

Que mais podemos fazer?
Este amor é um país cansado

que não nos deixa mudar.
O medo cerca as fronteiras

e a capital é Nenhures
cidade de perdulários

e pequenas ruas tortas
onde vem morrer a noite -

aqui estamos ambos sós,
desunidos, extraviados,

não há táxis na praceta
nem cinzeiros nos cafés

e perdemos os amigos
entre as curvas de um enredo

que deixamos de seguir.
Mas não era nada disto

o que tinha na cabeça
ao começar a escrever:

os versos chamam o escuro,
abrem os portões ao frio

e eu quero estar nas colinas
do outro lado do rio.

Rui Pires Cabral
in Ladrador




Coqueiral

Imagem da Web

A saudade é um batimento que rebenta assim
vinte e oito vezes desde meu ombro tatuado
de desastre até a rosa pendurada em sua boca

E o amor, neste caso específico, é um mergulho
destemido que deriva quase sempre de uma nota
climática apenas para convergir no osso frontal
do crânio do rei da ilusão - terno é o seu rosto

Senhor, os ossinhos do mundo são de mel e ouro.

Matilde Campilho
in Jóquei



Agulhas

Imagem via Pinterest

usei
o corpo
há tempos
com um fim
determinado

pico de neblina
álcool setenta
vala comum

hoje
oriento
meu corpo
no abismo

agulho
outros
meridianos

Chacal
in "A Vida é Curta pra Ser Pequena"




Vida aérea


Arte-colagem de Sammy Slabbinck

o quanto você quer, me diga, com frio na barriga,
proclamar norte onde seu nariz aponte, se livrar do
que não interessa, com força, abrir a cabeça, meter pés
pelas mãos, com pressa, não importa, sentar no escombro
ombro a ombro com a obra, me diga me diga, com frio
na barriga, quanto tempo perdido, quantos reais no bolso,
quantos livros não lidos, quantos minutos de espera,
quantos dentes cariados, me diga o quanto você quer isso tudo
e para onde quer que envie, se você quer que embrulhe.

Angélica Freitas
in Rilke Shake




Duas bagatelas

Fotografia de Ana Santl in Guest room

I
O que conheço de mim
é quase só o que sei,
e o que sei é quase só
o que não quero saber.
Resta saber se isso tudo
é só o começo ou se é o fim
ou - o que é pior que tudo -
se é tudo

II
Então viver é isso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vício,
só isso.

Paulo Henrique Britto
in "Mínima Lírica"




Nasci assustada

Imagem via Pinterest

nasci assustada
e nunca passa
coração barulhento
pregando peça

na batida de troca-guarda
ventrículo átrio átrio ventrículo
queimou atrito
coração atalho

um cateter dentro
incendiando acessos
vias elétricas
em passagens erradas
queimaram quimeras
ficaram nas cordas
angústias
taquicardias

meu coração
desde cedo atrapalhado
coração que atalha
de uma surpresa a outra

gosto de rotinas
meu coração
detesta

gosto de rotinas
meu coração
em festa

Natalia Borges Polesso
in "Coração à Corda"




Uma mulher com qualidades


Arte de Yasuyo Fujibe

(que há poucos minutos começou a envelhecer)

a mulher em questão sabe escrever sentenças longas, elegantes
desvia olimpicamente de todos os lugares comuns
como uma campeã
- uma amazona da retórica pululante
vazia como uma luminária

uma mulher que aprendeu a odiar seus retratos
(ha poucos minutos)
de cujo rosto temos uma vaga idéia
cuja boca se retorce brevemente
ao examinar-se ao espelho
ora, uma mulher com qualidades também desenvolve
seus primeiros vincos
nasolabiais
(uma boa mulher
incapaz como tantas outras
de manipular

     o tempo)

Rita Pessoa
in "Mulher Sob a Influêcia de um Algorítimo"




terça-feira, 28 de julho de 2020

Procura da poesia


Imagem da Web

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade 






O sentido oculto das coisas


"Um par de sapatos", de Vincent Van Gogh

O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos.
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja mais nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.

Alberto Caeiro
XXXIX, O Guardador de Rebanhos




Baixa-mar



Fotografia de Rala Choy

Acontece-me esta maré baixa de alento
que deixa a nu as rochas molhadas da inquietude.
Como uma praia vazia de água,
fico a debater-me no areal ventoso
num estranho vaivém
contra o penedio escarpado da alma.

E é uma descida íngreme, vertiginosa,
onde sufoco nas margens de mim,
me afogo em silêncios
e me firo
e me rasgo.

Ana Mateus


substantivo masculino
    1.
    geomorfologia
    penedos; penedal, penedio, piçarra.
    2.
    conjunto de penedos ('rochedos').







Falamos de sombra



Sim, falamos de sombras. Vendo bem,
Incendiámos tudo: Alexandria
E os sábios, as mulheres. Incendiámos
O grande coração. Temos aos ombros
O apetrecho dos destruidores,
Não a pólvora, não: essa arrogância
Pela qual o Ocidente se perdeu.

Helia Correia
in  "A Terceira Miséria"


domingo, 19 de julho de 2020

Imensidão


 Ilustração de Noumeda Carbone

Quebra-promessa
Quebra-pedra
Quebra-galho
Quebra-atalho
Vozes que ouço
Do outro que me diz
Quando o encanto quebra (oh não)
Não há cola no mundo
Que cole esta imensidão

Eupaitio Caska




quinta-feira, 16 de julho de 2020

A matéria do poema

 
 Ilustração de Cynthia Tedy 

O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.

O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.

Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.

E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.

O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.

Nuno Júdice





Casas


Foto de Dalva Nascimento 

Há sempre um deus fantástico nas Casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços.

Sophia de Mello Breyner Andresen
in Dia do Mar, 1947



 

Adeus


 Arte: "Poissons d'avril", por ©elf2mani

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.


Eugénio de Andrade
in Poesia e Prosa




quarta-feira, 15 de julho de 2020

O poema pouco original do medo


 Imagem da Web

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
...
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
...
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo (Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O’Neill
in Abandono Viciado



Me decidi te ver


Fotografia de Whitney Hayes

me decidi te ver
inteira, nua
uma mulher que é vento
e que é rua.

me decidi te amar
em meu quebranto
uma mulher que é sopro
e é espanto.

me decidi dizer-te
e fiquei mudo
uma mulher que é só
e só, é tudo.

Romério Rômulo



terça-feira, 14 de julho de 2020

Todos os dias


Fotografia de Diggie Vitt

Todos os dias
nascem pequeninas nuvens,
róseas umas,
aniladas outras,
nacaradas espumas.
Todos os dias
nascem rosas,
também róseas
ou cor de chá, de veludo.
Todos os dias
nascem violetas,
as eleitas
dos pobres corações.
Todos os dias
nascem risos, canções.
Todos os dias
os pássaros acordam
nos seus ninhos de lãs.
Todos os dias
nascem novos dias,
nascem novas manhãs.

Saúl Dias
in "Essência"




Uns mortinhos pequenos


 Escultura em vidro "Listening", de John Burchetta

tenho uns caixõezinhos no coração que me
nasceram quando partiste. se regados com
cuidado, brotam mortos como flores negras pelo
interior das veias, que me assombram o sangue, corando
a minha pele numa vergonha e sentindo medo

são uns mortinhos pequenos que muita gente
nem sabe que existem. acreditar em fantasmas é
só possível para quem tem muito amor e recusa a
pequenez da vida sem continuação

tenho uns caixõezinhos no coração que se
abrem a toda a hora. quando me deito, ouço-os
embatendo de encontro ao peito, talvez com vontade
de ir embora, talvez só por ser o amor tão estreito

valter hugo mãe




Preocupações naturais


Imagem da Web
 
Eu não tinha muita coisa e hoje tenho
a soma dos teus passos quando desces
a correr os nossos treze degraus e
me prometes: até logo. Mas se
nada (ou só o nada) está escrito,
quem mais ama é quem mais tem
a recear. Com isso, passo horas
num rebate de dramáticos motivos:
engano-me na roda dos temperos,
ponho sal na cafeteira, maionese
no saleiro, vejo o mel mudar de cor
e se me chama o telefone empalideço
como o rosto do relógio da cozinha.
Só sossego quando as gatas me garantem
que chegaste e posso então, aliviado,
unir-me ao coro de miaus que te recebe,
para mais uma noite roubada ao escuro.

José Miguel Silva




Turismo


Arte by Anna Berezovskaya - Islands of Love

Não entres como turista no coração de uma mulher
a bater fotos
a deixar latas de cerveja
buscando só imensas catedrais
e estátuas transparentes

com a mochila cheia de mapas
e fazendo refeições ligeiras

há um país
sete cidades
uma cordilheira e um inverno
no coração duma mulher

não bebas aí só um copo de mar

não entres no avião
toma o comboio da meia-lua
não reveles ali tuas fotos na hora

se não fizer muito frio
entra nu

não leves chapéu-de-chuva
e sobretudo não cortes árvores
no coração duma mulher
não costumam voltar a crescer.

José Maria Zonta 




Ainda bem

 
  Fotografia de Monia Melro

Ainda bem
que não morri de todas as vezes que
quis morrer – que não saltei da ponte,
nem enchi os pulsos de sangue, nem
me deitei à linha, lá longe. Ainda bem

que não atei a corda à viga do teto, nem
comprei na farmácia, com receita fingida,
uma dose de sono eterno. Ainda bem

que tive medo: das facas, das alturas, mas
sobretudo de não morrer completamente
e ficar para aí – ainda mais perdida do que
antes – a olhar sem ver. Ainda bem

que o teto foi sempre demasiado alto e
eu ridiculamente pequena para a morte.

Se tivesse morrido de uma dessas vezes,
não ouviria agora a tua voz a chamar-me,
enquanto escrevo este poema, que pode
não parecer – mas é – um poema de amor.

Maria do Rosário Pedreira



 

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Interior


 Imagem da Web

Por trás dos muros da nossa casa
Estamos tão juntos que nos tocamos:
O vento é brisa e a brisa é asa.
Por trás dos muros da nossa casa
Todos os frutos ficam nos ramos.

Vivamos, pois, dentro de nós
Deixando aos outros o gesto e a voz.

António Manuel Couto Viana


 

A saudade rói os ossos


 Arte de Heather Evans Smith

durante a tua ausência
deitei-me do outro lado
dormi de rosto colado
com a tua fronha

a saudade é uma doninha
a saudade é uma toupeira
ela rói dentro e fora
rói os ossos rói o peito
o corpo os sentimentos
a saudade rói os sonhos

e mostra os dentes 

liria porto



 

Café Orfeu


 
 Na fotografia a modelo brasileira Mahany Perry
 
Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.
Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.
Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.
E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.

Manuel António Pina



 

terça-feira, 7 de julho de 2020

Os meus melhores desejos



Fotografia Pixabay

Que a vida te pareça suportável.
Que a culpa não afogue a esperança.
Que não te rendas nunca.
Que o caminho que sigas seja sempre escolhido
entre dois pelo menos.
Que te interesse a vida tanto como tu a ela.
Que não apanhes o vício
de prolongar as despedidas.
E que o peso da terra seja leve
sobre os teus pobres ossos.
Que a tua lembrança ponha lágrimas nos olhos
de quem nunca te disse que te amava.

Amalia Bautista
in Coração Desabitado




We met together, you and I


 Fotografia de Dalva Nascimento - Praça da República, Rio de Janeiro/RJ

Às vezes encontramo-nos de
novo, anos passados sobre o
nosso amor nesta cidade.
Olhamo-nos. Tu
com os teus olhos mansos e
amarelos e de traição inocente.
Eu, com os olhos míopes, graves
e frios que são os meus.
Saúdas-me com a tua palavra
respondo com qualquer coisa
que move palavra velha
nos meus lábios.
Viveremos, morreremos entre as
casas, ruas e praça desta
cidade. Outros riem
cantam e sofrem - acredita -,
palavras assim citadas de
salvação, humildes e de indiferente
orgulho. Secam os lábios,
mortais, no encontro vazio e novo
dos nossos olhos, uma e outra vez,
ainda, em saudação.

João Miguel Fernandes Jorge




E se nenhuma porta se abre

 
Arte de Walter Girotto

e se nenhuma porta
se abre para o teu cansaço,
se te é
devolvido a cada passa o peso do teu rosto,
se é tua
esta, mais do que dor,
alegria de continuar sozinha
pelo límpido deserto dos teus montes

aceita então
que és poeta.

Antonia Pozzi
in "Morte de uma estação"




Suspiros & respiros

 
Arte surrealista de Giovanna Ranaldi 

meus sonhos são bainhas abertas,
eróticos respiram por minhas guelras
e respigam o visco sobre a pele
que geme
cada vez que te imagino
sugo o meu delírio quando me aleitas
furtivamente
e quando meu coração espelha nossa parecença
tu me restauras flor!

Lucia De Moura Chamma



 

aquela moça do rifle


Fotografia Man Ray 

aquela moça do rifle e dos cavalos
me entorta, me mata e desinventa.
que faço pra saber dos seus abalos?

essa mulher é uma agonia lenta.

Romério Rômulo 



 

Luto tenaz




Arte de Mira Nedyalkova 

É claro que penso em ti todos os dias.
Todos. Penso com raiva,
penso com uma revolta transtornada,
e depois,
depois penso com uma tristeza que me invade inteira, 
qualquer coisa que me derruba, que me mata,
e que esquecendo-me te esquece.
Até ao dia seguinte, é claro.

Sarah Adamopoulos



 

Desnudo e frágil


 Desconheço a autoria da imagem

Desnudo e frágil te soube,
tão frágil, tão desnudo,
que se te quebrou a sombra ao respirar.
Abri a porta e as vozes da água
tomaram a forma de teu corpo.
Tão leve parecias, tão
à beira de ti,
que a noite aprendeu
a dormir sobre o rio.

Chantal Maillard



 

domingo, 5 de julho de 2020

Em que parte do corpo se situa o medo?

 
 Fotografia de Robert Maxwell - Angelina Jolie

Em que parte do corpo se situa o medo? 
Em que parte se multiplica? 
No centro do peito? 
No nascimento da garganta vai descendo até ao estômago, 
demora-se nas pernas, de preferência nos joelhos, 
e chega até aos pés, sobe de novo e castiga os braços, 
põe-lhe luvas nas mãos 
e um corpete ajustadíssimo no peito. 
Eu aconselharia não consultar nenhum espelho 
quando o medo põe a mão na garganta. 
A supressão do medo causa estragos. 

Silvina Ocampo 
Tradução Maria Lolita Sousa



quinta-feira, 2 de julho de 2020

Não digas que eu não estava à janela

 
 Fotografia de Lisette Model 

Não digas que eu não estava à janela,
que não foi para ti o que não viste.
Há tanta coisa que não sabes, não digas.
Um dia ver-me-ás à janela de ontem
com a roupa que hei-de vestir amanhã.
Até lá pensa que me sonhaste. Nem eu mesma sei
o que fiz nesse dia. Mas a janela guarda os meus dedos
como tu me guardas. O tempo é uma invenção recente.
Era uma vez essa mulher que viste. Retira o vidro,
a moldura, e não te esqueças de abrir o horizonte.

Rosa Alice Branco




VI


 Fotografia de Henri Cartier-Bresson, Tokyo, 1965

A que vens, solidão, com teu relógio
de ponteiros de visgo, de bater de feltro?
Ombro nenhum ao meu ombro encostado,
a que vens, ó camarada solidão?

Companheira, amiga, até amante,
até ausente, ó solidão, te amei,
como se ama o frio até o frio dar
a chama que tu dás, ó solidão!

A que vens, enfermeira? Não sabes que estou morto,
que se digo o meu sim ou o meu não
é só para que os outros me julguem mais um outro,
é só para que um morto não tire o sono aos outros?

A que vens, solidão? Vai antes possuir
os que amam sem esperança e sem saber esperam,
dá-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro
o teu ombro nenhum, ó solidão!

Alexandre O'Neill (1924-1986)
"Poemas com Endereço", 1962 




Sem que soubesses


Imagem da Web

Falei de ti com as palavras mais limpas,
viajei, sem que soubesses, no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.

Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei da parcimônia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.

Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando, sem que soubesses, por tudo o que fazias.

Fernando Assis Pacheco (1937-1995)
"Cuidar dos Vivos", 1963




Onde quer que esteja


 Fotografia de Terry O'Neill - "A contemplative Audrey Hepburn 
with a dove perched on her shoulder". 1965 

Onde quer que esteja, em qualquer lugar
na Terra, escondo dos outros a certeza de
que n ã o s o u d a q u i.

Como se tivesse sido enviado para absorver
o máximo das cores, sons, cheiros, sabores,
provar de tudo o que é
reservado ao Homem, converter o vivido
num registo mágico e levá-lo para lá, de onde
parti.

Czeslaw Milosz
Trad.: Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves




Último brinde


Fotografia de Ernst Lubitsch, 1937
Marlene Dietrich no filme Angel 

Queiramos ou não
só temos três alternativas:
o ontem, o presente e o amanhã.

E nem sequer três,
pois, como diz o filósofo,
ontem é ontem,
é nosso apenas na memória:
à rosa que já se desfolhou
não se pode arrancar outra pétala.

As cartas por jogar
são apenas duas:
o presente e o dia de amanhã.

E nem sequer duas,
porque é um fato bem estabelecido
que o presente só existe
na medida em que se faz passado
e já passou…,
      como a juventude.

Em resumo,
só nos resta o amanhã:
levanto meu copo
por esse dia que nunca chega
mas que é o único
de que realmente dispomos.

Nicanor Parra 




Memória


Photo by Eugene Robert Richee, de 1928, 
Louise Brooks lounging on a large leather armchair 

Estou aqui, em casa, sozinho.
Aqui estão os móveis, o ar, os ruídos.
Tenho um sentimento tão transparente
quanto a vidraça de uma janela.
É como a janela da qual olhava a neve ao amanhecer,
há muitos anos, quando criança,
e pregava o rosto contra o vidro e compreendia toda a vida.
É um desejo calmo, como a tarde.
É estar como estão todas as coisas.
Ter meu lugar como tudo o que está na casa.
Perdurar pelo tempo que for, como as coisas.
Não ser mais nem melhor do que elas.
Só ser, no meio de minha vida,
parte do silêncio de todas as coisas.

Carlos Montemayor 




quarta-feira, 1 de julho de 2020

A morna fragilidade


 Pintura de Antony Frederick Augustus

A morna fragilidade
Da tua alma não combina
Com o meu amor selvagem
Que abre trilhas na ravina.
Amas no amor a avenida;
E eu te vejo assim impávida,
De mãos dadas com o marido,
A flanar feliz e grávida. 

 Heinrich Heine 






Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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