Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Já sou

 
Desconheço a autoria da imagem

seja ruído
seja beijo
seja voo
seja andorinha
seja lago
seja pacatez de árvore
seja aterrissagem de borboleta
seja mármore de elefante
seja alma de gaivota
seja luz num olhar
seja um cardume de tardes
e grite: JÁ SOU.

Ondjaki





Nao me fale mais


Desconheço a autoria da imagem

não me fales mais
dessa solidão de papel

eu ainda tenho a sede das oliveiras
a paciente sede
dos rios que nunca chegam
dos rios avistados
que não se podem tocar

eu ainda tenho a dor da terra queimada
a fortíssima dor
das chuvas que não voltam
das raízes que morrem
sem poder gritar

o teu nada
é só mais um perfume!

e eu
eu tenho sangue na voz
tenho no peito o grito do lobo
a imensa tristeza de uma lua
que o céu não quis

Gil T. Sousa





Podia ser aí


Imagem da Web 
Podia ser aí. Contigo. Com o teu corpo
ainda nu, ou vestido da luz que entra pelas
persianas velhas, trazendo a tremura
das folhas na trepadeira do quintal.

Podia ser de manhã, ou de madrugada,
sabendo que teria de te abraçar para que não
desses pelo frio, com o quarto ainda
úmido da noite, num fim de outono.

Podia não ter sido nunca, se não fossem
assim as coisas: a tua mão ao encontro da
minha, no tampo da mesa, como se fosse
aí que tudo se jogasse, entre duas mãos.

Nuno Júdice




As facas


Imagem via tuningpp.com "knife throwing target girls"
 
Quatro letras nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome
Quatro facas amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome.

Este amor é de guerra. (De arma branca)
Amando ataco amando contra-atacas
este amor é de sangue que não estanca
Quatro letras nos matam quatro facas.

Armado estou de amor. E desarmado.
Morro assaltando morro se me assaltas
e em cada assalto sou assassinado.

Quatro letras amor com que me matas.
E as facas ferem mais quando me faltas.
Quatro letras nos matam quatro facas.

Manuel Alegre




Pergunta-me



Arte de Christian Schloe
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer.

Mia Couto





terça-feira, 28 de abril de 2020

Não sabemos nada


Imagem da Web
Não sabemos nada
Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa vontade
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem nos deve esperar, nem sequer
quem temos de aguardar no meio
de um cais frio. Não sabemos nada.
Avançamos às cegas e duvidamos
se isto que se parece com a alegria
é só o sinal definitivo
de que nos voltamos a enganar.

Amalia Bautista






Uma coisa inocente


Desconheço a autoria da imagem 

Estendi a mão por qualquer coisa inocente
uma pedra, um fio de erva, um milagre
preciso que me digas agora
uma coisa inocente

Não uses palavras
qualquer palavra que me digas há-de doer
pelo menos mil anos
não te prepares, não desejes os detalhes
preciso que docemente o vento
o longínquo e o próximo
espalhe o amor que não teme

Não uses palavras
se me segredas
aquilo que no fundo das nossas mentiras
se tornou uma verdade sublime.

José Tolentino Mendonça


Creio nos anjos que andam pelo mundo

 
Imagem da Web

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. amém.

Natália Correia





Ouve, tu que não existes em nenhum céu


Imagem da Web
 
Ouve, tu que não existes em nenhum céu:

Estou farto de escavar nos olhos
abismos de ternura
onde cabem todos menos eu.

Estou farto de palavras de perdão
que me ferem a boca
dum frio de lágrimas quentes de punhal.

Estou farto desta dor inútil
de chorar por mim nos outros.

- Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever
os versos que me fazem doer.

José Gomes Ferreira




Os meus demônios


Imagem da Web

Os meus demônios
tratam-me pelo nome.
Os meus demônios
são legião e não desertam.
Os meus demônios
obedecem a todas as ordens
e a nenhuma vontade.
Os meus demônios
começaram por ser meus
por afinidade e agora
são parentes de sangue.
Os meus demônios
é que escrevem os poemas.

Pedro Mexia




 

Que amor não me engana

 
Arte de Amy Judd

Que amor não me engana
Com a sua brandura
Se da antiga chama
Mal vive a amargura
Duma mancha negra
Duma pedra fria
Que amor não se entrega
Na noite vazia?
E as vozes embarcam
Num silêncio aflito
Quanto mais se apartam
Mais se ouve o seu grito
Muito à flor das águas
Noite marinheira

Vem devagarinho
Para a minha beira
Em novas coutadas
Junta de uma hera
Nascem flores vermelhas
Pela Primavera
Assim tu souberas
Irmã cotovia
Dizer-me se esperas
Pelo nascer do dia.

Zeca Afonso 





Primeiro esqueci o cheiro

 
 Arte de Sonia Silva

Primeiro esqueci o cheiro
E ao acordar já não senti o sabor da sua boca
Depois o corpo tornou-se memória
Em vez de impressão
Esfumado, perdido, inglório
O seu rosto desaparecia
Ficavam quase nem os contornos
E no fim sentia só uma tristeza
De promessa feita e não tornada 

Miguel Soares





 

As palavras de amor

 
 Imagem da Web 

Esqueçamos as palavras, as palavras:
As ternas, caprichosas, violentas,
As suaves de mel, as obscenas,
As de febre, as famintas e sedentas.
Deixemos que o silêncio dê sentido
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre:
Que palavra ou discurso poderia
Dizer amar na língua da semente? 

José Saramago
in "Finalmente Alegria"




 

Abstinência de presença


 "Cathedral", 1908, obra de Auguste Rodin

São tempos modernos.
Todos conectados, mas
Desconectados um do outro.
A sociedade está doente!
Falta abraços pra gente
Os vícios são outros agora.
Tudo se resolve com um "toque".
Se toquem!
Os arrepios são provocados por notificações
Não mais pelo toque das mãos.

Karine Martins



 

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Ninguém sabe quem fabrica estes vampiros em série

 

Ninguém sabe quem fabrica estes vampiros em série.
De dia roubam-nos os olhares e os gestos.
De noite, escondem-nos o dia e não pedem resgate.
O tempo não passa por eles: eles são o Tempo.
Quando os teus espelhos tiverem fome dá-lhes de comer
o que te sobrar: uma ruga, uma olheira, um cansaço.
Nunca irão ficar saciados; vira-os contra a parede.
Às vezes, quando ninguém os vê, sofrem pesadas digestões
e então devolvem um bocado mais dos que engoliram.
De nada serve partir o seu reflexo: vão se multiplicar se os dividires.
A única maneira de matar um espelho é colocá-lo em frente a outro.
Ninguém sabe porquê, mas - ao reconhecerem-se - ficam cegos.

Jesus Jiménez Domínguez





Queria dizer-te um poema


  Imagem da Web

queria dizer-te um poema de vento
onde coubessem as verdadeiras raízes da memória
as grandes verdades do amor
a sutileza das minhas mãos ao tocar as tuas,
ainda os rios
os rios amor
e o doce néctar das auroras.

as palavras ocupam o espaço do silêncio.

Susana Miguel




 

Lição de arquitetura:


Imagem da Web

alguns espaços constroem-se mais pela memória
do que pelo olhar,
mais pela ausência
do que pela presença,
e assim e ali se sobrepõem todos os tempos.
Para que não digam que não existem máquinas do tempo.

Pedro Jordão
 
 
 
 

Faço mapas das lágrimas


 Fotografia de Olga Astratova

digo que faço mapas das lágrimas
mais do que água
é inventar paisagens
onde te faço memória
qualquer coisa entre o olhar
e o vazio de dizer palavras
contadas pelos dedos 

Maria Lolita Sousa 





Atropelamento


Imagem da Web

Quando eles dizem
"morreu rebentada por dentro"
querem dizer
que o coração
se moveu do esquerdo
ao lado direito do peito
que o impacto se sentiu no pulmão
onde o coração entrou e ficou escondido
palpável à língua
Que o fígado acidulado por um último jantar
se lançou em espuma contra as costas
e negra da noite ao avesso
a caixa torácica perdeu o abaule
o orgulho
as flores como pétalas de osso quebraram
por todo o dentro de cinco sentidos
Em todo o caso o corpo
ficou incólume
sentado na estrada
desviado apenas do lugar
onde esteve o baque da alma.

Andreia C. Faria
in Flúor, Textura, 2014



 

Quanto me queres


 Arte de Jared Joslin

Quanto, quanto me queres? – perguntaste
Numa voz de lamento diluída;
E quando nos meus olhos demoraste
A luz dos teus senti a luz da vida.
Nas tuas mãos as minhas apertaste;
Lá fora da luz do Sol já combalida
Era um sorriso aberto num contraste
Com a sombra da posse proibida…
Beijámo-nos então, a latejar
No infinito e pálido vaivém
Dos corpos que se entregam sem pensar…
Não perguntes, não sei – não sei dizer:
Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder.

António Botto



 

No vale dos afetos



Fotografia de  Emma Hartvig

No vale dos afetos
ninguém está seguro:
Mingua a lembrança,
Esquece-se o rosto,
Retorna-se ao eu,
Os lábios secam, as palavras dormem, os sonhos dispersam-se, a
presença ausenta-se, há o lago de que não se vê o fundo.

E apenas as pequenas ilusões
- um café, o cigarro, a limonada -
imitam dois corações unidos.

Raul de Carvalho




Talvez amanhã surja um meteoro ardente


 Fotografia Surrealista de  Kylli Sparre 

Talvez amanhã surja um meteoro ardente,
um pássaro de fogo ou um renque de estrelas.
Talvez no mar em ondas altas se levante
um cavalo de espuma sobre todas elas.
Talvez por dentro do silêncio, na sombria
noite, rebente como um grito a luz do dia.
Talvez, nos olhos de quem chora, a claridade
provoque uma explosão de beijos e de risos
e até na mais obscura rua da cidade
os lamentos e ais deixem de ser precisos.
Talvez na ilusão que nos permite a esperança
possamos ir em frente e prosseguir a dança.

Torquato da Luz




Queria que me acompanhasses



Fotografia Surrealista de Kylli Sparre 

queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos

Ana Paula Inácio




sábado, 25 de abril de 2020

Vivo sobre um fio de aranha esticado

 
"Sur Ton Fil",
Arte Digital Surrealista, by Teddy Locquard
 
Vivo sobre um fio de aranha esticado entre dois mundos paralelos.
Sou esse fio nesse lar de mentira
passo os dias entre o presente e o futuro condicional
do verbo maior de todos
O verbo que a morte não conjuga
Eu conjugo.
O verbo que me quer fazer um filho sem pecado,
de todos os meus filhos o mais amado.
O filho sonho.
Vivo este fio mentira caverna sombra 
esta lama esta luta esta lâmina aos pulsos da coragem tatuada
Tudo por um grito em que me evada sem a dor que me resta em cada cicatriz.
Levo a minha fauna para a terra dos sonhos.
Onde não se coma poesia não posso ser feliz.

Ana Rita Calmeiro





Me decidi te ver


  John William Godward, Athenais, 1908 (detail)

me decidi te ver
inteira, nua
uma mulher que é vento
e que é rua.
me decidi te amar
em meu quebranto
uma mulher que é sopro
e é espanto.
me decidi dizer-te
e fiquei mudo
uma mulher que é só
e só, é tudo."

Romério Rômulo







Suplicantes


 "Mãos em prece", obra de Elda Evelina
 
Suplicantes,
nuas,
duas mãos em prece
aguardando o milagre,
que acontece.
Uma coisa que não,
um quase-nada,
e os sonhos voltarão,
de madrugada.

Manuela Oracy




Conformismo

 
Arte by Eve North, no Flickr

almas que se esvaziam
em correntes paralelas

cadências sem compasso
orquestra de solistas

destilo consciências
seduzo-me em insinuações

saboreio a doutrina
do conformismo

Duarte Costa



 

No cortejo das sombras

 
 Arte de Anna Kott

No cortejo das sombras,
incapaz de te encontrar,
tão irreal que és,
como uma manhã de inverno
ou uma rua deserta,

no cortejo das sombras
distingo
o pavor de te desconhecer

Luís Quintais



 

Estavas sentado


 
Imagem via Pinterest 

Estavas sentado e havia uma paisagem agreste
nos teus olhos: as nuvens a prometerem chuva,
os espinheiros agitados com a erosão das dunas,
um mar picado, capaz de todos os naufrágios.

O teu silêncio fez estremecer subitamente a casa -
era a força do vento contra o corpo do navio; uma
miragem fatal da tempestade; e o medo da tragédia;
a ameaça surda de um trovão que resgatasse a ira
dos deuses com o mundo. Quando te levantaste,

disseste qualquer coisa muito breve que me feriu
de morte como a lâmina de um punhal acabado
de comprar. (Se trovejasse, podia ser um raio
a fraturar a falésia no espelho dos meus olhos.)

Hoje, porém, já não sei que palavras foram essas -
de um temporal assim recordam-se sobretudo os despojos
que as ondas espalham de madrugada pelas praias.

Maria do Rosário Pedreira



 

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Quantas vezes te esperei neste lugar



Imagem da Web

Quantas vezes te esperei neste lugar
quantas vezes pensei que não chegavas
quantas vezes senti a rebentar
o coração se ao longe te avistava.

Quantas vezes depois de teres chegado
nos colámos no beijo que tardava
quantas vezes trementes e calados
nos entregámos logo sem palavras.

Quantas vezes te quis e te inventei
quantas vezes morri e já não sei.

Torquato da Luz 




Onde te tenho


Desconheço a autoria da imagem

Na expansão do meu inconsciente
Tenho-te, sempre em três níveis

O abstrato
que me inspira

O imaginário
que te constrói

O real
Que nos separa

Jaak Bosmans




Luta de classes


Fotografia de Kyle Price 

um menino
corre pelos becos
em busca do eco
no estômago vazio

outro menino
consome a infância
nos shoppings

ambos brincam
com o futuro
 
Lau Siqueira
In Poemas Vermelhos





Poética


O poeta Manuel Bandeira 

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar
com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de
agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação

Manuel Bandeira



 

E na trilogia de mim

 
Imagem de Ana Paula Madureira 

e na trilogia de mim
o fio que me tece
no além das sombras
e que em esconderijo
me atapeta
no musgo
veludo
fonte
que me veste

e puxo-o
no bordado
em que me arrendilho

cânticos ancestrais
esses que trago
no recôndito do corpo
em que me rendo

e em cítara
vibro
na sonoridade da minha pele
onde o uivo é pétala
e a luxuria
o ferrão sagrado
com que me despeço do corpo

Ana Paula Madureira





quinta-feira, 23 de abril de 2020

Oração aos vivos para que sejam perdoados por estarem vivos


 Ilustração de Marcella Ferreira

Eu suplico-vos
fazei qualquer coisa
aprendei um passo
uma dança
alguma coisa que vos justifique
que vos dê o direito
de vestir a vossa pele o vosso pêlo
aprendei a andar e a rir
porque será completamente estúpido
no fim
que tantos tenham sido mortos
e que vós viveis
sem nada fazer da vossa vida.

Charlotte Delbo




Hoje, vieram buscar-me cedo


 
Foto de Monia Merlo

Hoje, vieram buscar-me cedo.
É a tal história, tiram-me do sono,
passam-me para a maca e
ninguém quer saber das minhas vontades.
Nem fui fazer chichi, nem me fizeram o buço.
Estou com o bordado da fronha estampado nas fuças
e, com este péssimo aspecto,
fazem-me desfilar pelos corredores cheios de gente
que acorda de madrugada
e se põe bonita para vir aqui tirar fotografias
 a rins e pulmões.
Fora a vadiagem que só entra para aquecer os pés, 
estou eu, feita bicho, amarrada a uma etiqueta,
como os cavalos na feira.
Por isso, puxo com os dois braços
uma fralda que encontro por perto
e enxugo o meu rosto pejado de medo,
porque tudo isto é mesmo uma merda,
mas depois melhora um pouco
quando me enchem de morfina
e me devolvem, à saída, o telemóvel.

Golgona Anghel







Insônia


Imagem da Web 

Um minuto sobre o lado esquerdo.
Um minuto sobre o lado direito.
Um pouco de costas,
um segundo sobre o ventre.
Dou voltas no vazio.
Frio nos meus sonhos,
frio na minha cama.
Os ladrões de sono saquearam a minha noite,
um deles teve pena de mim
e deixou-me a manhã
na mesa-de-cabeceira.

Maram-Al-Masri 




segunda-feira, 20 de abril de 2020

Parto com o ar


 Imagem da Web 

Eu parto com o ar – sacudo minha neve branca ao sol que foge
Desfaço minha carne em redemoinhos de espuma,
Entrego-me ao pó para crescer nas ervas que amo;
Se queres ver-me novamente, procura-me sob teus pés.
Dificilmente saberás quem sou ou o que significo;
Não obstante serei para ti boa saúde
E filtrarei e comporei teu sangue.
E se não conseguires encontrar-me, não desanimes;
O que não está numa parte está noutra
Em algum lugar estarei à tua espera.

Walt Whitman





Acreditei que se amasse de novo

 
 Arte de Annett Turki 

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos

Ana Cristina César



 

Do inquieto oceano da multidão


 Arte surrealista de Gennady Privedentsev

Do inquieto oceano da multidão veio a mim uma gota
gentilmente suspirando: Eu te amo, há longo tempo
Fiz uma extensa caminhada apenas para te olhar, tocar-te,
Pois não podia morrer sem te olhar uma vez antes,
com o meu temor de perder-te depois.
Agora nos encontramos e olhamos, estamos salvos,
Retorne em paz ao oceano, meu amor,
Também sou parte do oceano, meu amor,
não estamos assim tão separados,
Olhe a imensa curvatura, a coesão de tudo tão perfeito!
Quanto a mim e a você, separa-nos o mar irresistível
Levando-nos algum tempo afastados,
embora não possa afastar-nos sempre:
Não fique impaciente – um breve espaço –
e fique certa de que eu saúdo o ar,
a terra e o oceano,
Todos os dias ao pôr-do-sol,
por sua amada causa, meu amor.

Walt Whitman



 
 

Fala-me das tuas mãos

 
Fotografia de Laura Makabresku 

fala-me das tuas mãos,

por elas passa o meu destino,
a direção clara do meu corpo.
fala-me dos teus gestos,
de como serão os desenhos que farás
para que estendidas as linhas
eu caminhe sobre elas

Silvia Chueire 











Sensação


"Amanhecer sobre Trigais", Carlos Raposo

Nas noites azuis de verão
irei pelos caminhos
no meio do trigo,
pisando a relva tenra.

Não falarei nada,
não pensarei em nada
e irei longe, muito longe,
como um cigano
no meio da natureza
feliz como se estivesse
com uma mulher.

Arthur Rimbaud





Canção do exílio



Trabalho do fotográfo Francois Rosseau

O poeta sem sua plumagem
é um deus exilado do cosmo
strip-teaser metafísico
só lhe resta sambar no inferninho
do caos
sob os neons do nada
sempre nu diante do espelho
sem espelho diante de si

Geraldo Carneiro








Contranarciso

 
  "Narcizo" - Arte de Carmen Giraldez

Em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando estamos sós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
 
Paulo Leminski






Lição

 
  Arte fotografica de Tommy Ingberg

À beira do claustro
o monge se inclina
e na pedra aprende
o que a pedra ensina:
que a vida é nada
com a morte por cima,
que o tempo apenas
este fim lhe adia
e que o ser carece
de não ser ainda,
pois à luz se esquiva
do que o purifica:
a doce pedra,
sem musgo ou limo,
o pátio só,
conquanto o sino,
o ermo das coisas
simples e humildes.

Ivan Junqueira 



 

 


Amavisse VI

 
  Desconheço a autoria da imagem

Que as barcaças do tempo me devolvam
A primitiva urna de palavras.
Que me devolvam a ti e o teu rosto
Como desde sempre o conheci: pungente
Mas cintilando de vida, renovado
Como se o sol e o rosto caminhassem
Porque vinha de um a luz do outro.

Que me devolvam a noite, o espaço
De me sentir tão vasta e pertencida
Como se as águas e madeiras de todas as barcaças
Se fizessem matéria rediviva, adolescência e mito.

Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.

Hilda Hilst 



 


Por dentro dos filamentos


 Imagem da Web
 
É preciso viajar entre
o que se torna invisível
e o que por dentro nos habita.

Abandonarmo-nos à sorte
à intuição do intimo
caminhar na translúcida luz
por dentro dos filamentos
de uma lâmpada exterior ao tempo.

Extrair a lucidez na loucura
extasiada da febre
num caos superlativo.viver no limite da palavra,
aquela, a única, a eleita
na convergência dos sentidos.

É preciso que o sangue
atravesse o zênite da carne
e seja o perfume vermelho do Sol.
 
Joaquim Monteiro



 

domingo, 19 de abril de 2020

Oxalá possamos ter a coragem


 Imagem da Web

Oxalá possamos ter a coragem de estar sós
e a valentia de arriscarmos estar juntos,
pois de nada serve um dente fora da boca,
nem um dedo fora da mão.

Oxalá possamos ser desobedientes,
a cada vez que recebermos ordens
que humilham nossa consciência
ou violam nossos princípios.

Oxalá possamos ser capazes de seguir caminhando
os caminhos do vento, apesar das quedas,
traições e derrotas, porque a história continua para além de nós, 
e quando ela diz adeus, está dizendo: até logo.

Oxalá possamos manter viva a certeza
de que é possível ser compatriota e contemporâneo
de todo aquele que viva animado por vontade de justiça
e de beleza, nasça onde nascer e viva quanto viver,
porque não há fronteiras no mapa da alma nem do tempo

Eduardo Galeano 





Noite (?)


 Fotografia de Eupaitio Caska

enquanto dormia
minha alma voou por ai
desafiou algumas alturas
e trouxe-me quedas
sem paralelos
enquanto dormia
minha alma navegou por aí
em lugares distantes
nunca antes visitados
e trouxe-me encontros
como há tempo não vivia
enquanto dormia
minha alma aventurou-se por aí
iluminada ao luar
e trouxe-me sonhos
simplesmente inimagináveis
enquanto dormia
minha alma perdeu-se por aí

Eupaitio Caska




No Sagrado Templo

 
Imagem da Web

O que te esquenta,
me atormenta.
O que te aquece,
me adormece.
O que te atiça,
me instiga à cobiça.
Sou ator à dor,
Cantador ao amor,
Contador de cada grão
perdido na espuma.
Onda a onda,
uma a uma.
No mais,
em elevado mirador
- sagrado templo -
contemplo a cor
das estrelas
- da estréia
à última sessão.

Eupaitio Caska



 

Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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