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Arte de Sofia Bonati |
invejei a fragata
Um poeta é um rouxinol que se senta na escuridão, e canta para se confortar da própria solidão com seus próprios sons. Seus ouvintes são homens arrebatados pela melodia de uma musica invisível, que se sentem comovidos e em paz, ainda que não saibam como nem porquê” (Percy Bysshe Shelley)
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Imagem via Google |
(…)
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Arte Maria Fett |
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Arte de @ Natalia Drepina |
Aqui de perto vejo o rio para além do mundo, para além dos prédios. E esse rio surge-me tão maior, maior do que o mar.
Para além desta janela tudo é rio sem margens nem curvas sinuosas
[apenas as tuas por trás da janela que os meus olhos tudo recortam]
A cegueira do copo liberta-me da prisão do espelho. E no copo está a parte do rio que quero só para mim.
Em cada gota se conta o tempo, como ampulheta líquida
[em cada gota o teu desenho margem do meu rio]
Aqui de perto, mesmo aqui tão perto, sem te poder tocar, sou ilha e rio à procura do teu mar.
Para além desta janela não há nada senão a vontade de ti
[chamo-te. sonho-te na corrente do sonho]
Paulo Nunes
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Arte de @ Laura Makabresku |
Fernanda Guimarães
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"Father's Pride", by David Unger |
Num dia, eram só crianças a caminho do futuro.
No outro, são crianças sem futuro a caminho.
Num dia, eram só mães a dizer aos filhos até logo.
No outro, são mães sem saber o que dizer.
Sem saber quanto tempo vai demorar essa despedida.
Num dia, eram só rapazes a combinar sair com os amigos.
No outro, são rapazes sem saída à espera dos inimigos.
Num dia, eram só homens a regressar a casa do trabalho.
No outro, são homens sem casa a que regressar.
Eram só pais a dar a mão aos filhos para atravessar a estrada,
agora são pais a quem arrancam os filhos das mãos e as estradas já não se deixam caminhar.
Num dia, no outro. Da noite para o dia, escureceu e a manhã ainda não rompeu.
Elisabete Bárbara
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Foto de Dalva Nascimento |
Esta é a hora. O lugar.
Em que nada acontece. Nada é.
Nada prospera.
A cegante claridade de um deserto.
A imobilidade de uma janela sufocada.
Repara, toca, saboreia
este silêncio.
Os nomes coagulados
numa pronúncia pétrea.
Uma dicção nula que traduz um rigoroso vazio.
É aqui. Neste dia apunhalado pelas costas,
nesta árida zona fantasma,
onde nada diz nada,
neste cenário de brancura isenta e calada,
que me ponho a escrever
o poema.
Sandro Fortes
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Imagem via Pinterest |
Cedo ao espanto que me torna por encanto.
Onde brindo lua.
Nua. Crua.
Ao teor da inspiração que trama a exaltação.
Embebe o céu dos ébrios.
Propício ao sumo, aos surtos, aos vícios.
Que pernoita o grau estrelar nas taças de vinhos
silêncios.
Cedo ao perfume suspenso que inebria aos cachos.
Por frestas, transpira signos na pele em flor.
Costura papoulas e lírios nos sítios –
linha mística dos tragos intimistas -
que afagados, sedam a carne dos afogados,
embalam a viva alma num sentimento sem jaula.
Que toma conta por dentro.
Da terra. Do vento. Do tempo.
Cedo até desvairar todo ar que dobra no peito
e sobra no fundo do olhar.
Até povoar o deserto, beber o universo e
no ventre estrelas entornar.
Território constelar dos sedentos.
Dos intentos. Dos inventos.
Cedo em alagadiços terrenos,
que penetram os movediços venenos.
Cris de Souza
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Andrew Kudless Art |
É o pranto
Que ninguém chora
Que eu agora
Canto.
E aquele amor constante,
Desenganado
Que nunca teve amante
Nem amado.
E o gesto cordial que se não fez,
Nem faz
E fica por detrás
Da timidez.
E o imortal poema
Por acontecer,
Irmão do vento, seu rival sem asas:
Lume a fugir das brasas
Antes de a lenha arder.
Miguel Torga
in Orpheu Rebelde