Natureza Morta com Maçãs Fruta Pintura de Vincent Van Gogh
1
Senhor, vão sendo horas.
Sei bem que o teu relógio
não tem de regular-se pelo meu
nem a tua vontade pela minha.
Mas é justo que seja aquele que sofre
do tempo os enxovalhos
a dizer quando vão sendo horas —
e não tu, Senhor, com quem
o tempo não colide
(decerto porque tu mesmo és o tempo
ou a ausência dele,
e não podes portanto avaliar
quando se nos torna o peso do Verão
desmedido, funesto, vexatório.)
2
Como foi longo o estio. Como se demorou
o Sol nas coisas com cínica indiferença
própria dos deuses.
Como o sol crestou a erva, a pele.
É tempo de vento à solta nas campinas.
Entorna, Senhor, o bálsamo das sombras
sobre o quadrante dos relógios de sol
e sobre tudo o mais que o verão escaldou.
Que vigorem as trevas, chuva e frio
com que se tece
o branco lenço da melancolia.
3
Estão colhidas, derramadas
na sua cama de palha,
as maçãs que hão de perfumar a casa
no inverno avesso a cheiros.
O vinho já ganhou
doçura e perfídia quanto baste.
Estas são, Senhor, as minhas provisões
para os dias de estio que aí vêm.
4
Eu fiz a minha casa com uma pedra
que me deste. Usei a tua madeira,
os teus metais. Posso dizer:
tenho uma casa, eu não sou daqueles
para quem o verão não foi mais que um embuste.
Mas sei de muitos a quem o sol cegou
e já não podem ver
o esplendor das trevas.
Isto é: já não podem construir
casa nenhuma.
5
Não estou só
Recrutei companheiros para o inverno
que não o temem como se teme um lobo,
mas apenas como é justo que se tema
o desdobrar das páginas do tempo:
com decoro. Então
aconchegados a mim, e eu a eles.
Somos uma parede.
Mas há quem esteja só
e assim deva ficar.
A esses, tudo aquilo que o nocivo
inverno lhes trouxer
recordará o que ficou retido
nas levianas demasias do verão.
As cartas que usarão como recurso
contra a ausência do sol
ninguém lhas lerá, ser-lhe-ão devolvidas
com um carimbo maquinal: «Desconhecido
neste endereço». Cartas descompostas
de terem ido e voltado.
Cartas que em boa verdade
escreverão a si mesmos
sob outros nomes e moradas. Cartas
semelhantes a ardilosos bumerangues
ou a cães ensinados a voltar para nós,
trazendo na boca, molhado de saliva,
o pau que arremessámos.
6
Mas possa eu, Senhor, não perder nunca
os olhos com que ao frio me enamoro
das folhas que se movem casuais
ao vento outonal das alamedas.
A. M. Pires Cabral
Senhor, vão sendo horas.
Sei bem que o teu relógio
não tem de regular-se pelo meu
nem a tua vontade pela minha.
Mas é justo que seja aquele que sofre
do tempo os enxovalhos
a dizer quando vão sendo horas —
e não tu, Senhor, com quem
o tempo não colide
(decerto porque tu mesmo és o tempo
ou a ausência dele,
e não podes portanto avaliar
quando se nos torna o peso do Verão
desmedido, funesto, vexatório.)
2
Como foi longo o estio. Como se demorou
o Sol nas coisas com cínica indiferença
própria dos deuses.
Como o sol crestou a erva, a pele.
É tempo de vento à solta nas campinas.
Entorna, Senhor, o bálsamo das sombras
sobre o quadrante dos relógios de sol
e sobre tudo o mais que o verão escaldou.
Que vigorem as trevas, chuva e frio
com que se tece
o branco lenço da melancolia.
3
Estão colhidas, derramadas
na sua cama de palha,
as maçãs que hão de perfumar a casa
no inverno avesso a cheiros.
O vinho já ganhou
doçura e perfídia quanto baste.
Estas são, Senhor, as minhas provisões
para os dias de estio que aí vêm.
4
Eu fiz a minha casa com uma pedra
que me deste. Usei a tua madeira,
os teus metais. Posso dizer:
tenho uma casa, eu não sou daqueles
para quem o verão não foi mais que um embuste.
Mas sei de muitos a quem o sol cegou
e já não podem ver
o esplendor das trevas.
Isto é: já não podem construir
casa nenhuma.
5
Não estou só
Recrutei companheiros para o inverno
que não o temem como se teme um lobo,
mas apenas como é justo que se tema
o desdobrar das páginas do tempo:
com decoro. Então
aconchegados a mim, e eu a eles.
Somos uma parede.
Mas há quem esteja só
e assim deva ficar.
A esses, tudo aquilo que o nocivo
inverno lhes trouxer
recordará o que ficou retido
nas levianas demasias do verão.
As cartas que usarão como recurso
contra a ausência do sol
ninguém lhas lerá, ser-lhe-ão devolvidas
com um carimbo maquinal: «Desconhecido
neste endereço». Cartas descompostas
de terem ido e voltado.
Cartas que em boa verdade
escreverão a si mesmos
sob outros nomes e moradas. Cartas
semelhantes a ardilosos bumerangues
ou a cães ensinados a voltar para nós,
trazendo na boca, molhado de saliva,
o pau que arremessámos.
6
Mas possa eu, Senhor, não perder nunca
os olhos com que ao frio me enamoro
das folhas que se movem casuais
ao vento outonal das alamedas.
A. M. Pires Cabral
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