Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

quinta-feira, 27 de junho de 2013

"O Mundo Está Prestes a Rebentar"


Fotografia de Lucy Nuzum

Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.
Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
E ver se conseguimos de novo um ponto de partida.

Harold Pinter


quarta-feira, 26 de junho de 2013

"Secreto"


Arte de Maria Amaral

Antes eu não sabia
porque é que se deve
- dia após dia –
andar sempre em frente
até como se diz
o corpo aguentar.

Agora sei.
Se vieres comigo
digo-te.

José Agustin Goytisolo


terça-feira, 25 de junho de 2013

"Oração Aos Vivos Para Que Sejam Perdoados Por Estarem Vivos


Fotografia de Aernout Overbeeke

Eu suplico-vos
fazei qualquer coisa
aprendei um passo
uma dança
alguma coisa que vos justifique
que vos dê o direito
de vestir a vossa pele o vosso pêlo
aprendei a andar e a rir
porque será completamente estúpido
no fim
que tantos tenham sido mortos
e que vós viveis
sem nada fazer da vossa vida.

Charlotte Delbo


segunda-feira, 24 de junho de 2013

"Mãos Astutas de Princesa"


Arte de Peter Mitchev

Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projeto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exatos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.

António Franco Alexandre


domingo, 23 de junho de 2013

"Janela Sobre Uma Mulher"


Arte de Patrick Palmer

Essa mulher é uma casa secreta.
Em seus cantos, guarda vozes e esconde fantasmas.
Nas noites de inverno, jorra fumaça.
Quem entra nela, dizem, não sai nunca mais.
Eu atravesso o fosso profundo que a rodeia. Nessa
casa serei habitado. Nela me espera o vinho que me
beberá. Muito suavemente bato na porta, e espero.

Eduardo Galeano


sábado, 22 de junho de 2013

"Duas"



Somos duas 
Não gêmeas, ambas fêmeas, 
Somos duas. 
Uma destra, outra sinistra, 
Uma levada, outra anarquista. 
Uma sofisticada, outra caseira, 
Uma bem amada, outra presepeira. 

Somos duas. 
Uma que ama, outra que reclama. 
Uma que vence, outra que convence. 
Uma que estuda, outra arquiteta. 
Uma selvagem, outra irrequieta. 

Somos duas. 
Uma te quer, outra te repele 
Uma é mulher, outra mademoiselle. 
Uma sente muito, outra é prisioneira. 
Uma guarda tudo, outra é fuxiqueira. 

Somos duas. 
Uma livre, libertina. 
Outra simples, na cozinha. 
Uma ardente, sensual. 
Outra silente, casual.

Somos duas 
Somos opostas 
Somos compostas 
Somos dispostas 
A ser uma só. 

Lílian Maial


sexta-feira, 21 de junho de 2013

"De Perguntas e Desafinos"

Arte de Cesar Prada

que acorde é esse
que sintonia é essa
que te deixa adormecida
tão fora do tom
não mantendo a forma do acordo
feito com a outra face no espelho?

que face é essa
que esconde o choro
do samba rasgado
e te derrama em jazz
ou em valsa solo?

(com quantos bemóis
se faz o limite do desafino?)

Beth Almeida


quinta-feira, 20 de junho de 2013

"Encontro"


Arte de Denis Nolet

Visito esse lugar.
Procuro-te nesse recanto habitual.
Sei que não estarás lá,
mas finjo ignorá-lo,
procuro pensar que saíste,
que saíste há pouco,
numa ausência breve,
como se tivesses saído
para logo regressares.
Quando chegasses, se tu chegasses,
dir-te-ia: Tu lembras-te?
E o verbo acordaria ecos,
nostalgias distantes,
velhos mitos privados.
Sei que não virás,
conjecturo até, por vezes,
teus distantes, inúteis
diálogos numa praça gris
que imagino em tarde de invernia.
Então disfarço, ponho-me
a inventar, por exemplo,
uma longilínea praia deserta,
uma fina, fria, nebulosa
praia
muito silenciosa e deserta.
Pensando nela fito de novo
este lugar e digo para mim
que apenas partiste
por um breve instante.
E sigo. E de novo protelo
este encontro impossível.

Rui Knopfli

quarta-feira, 19 de junho de 2013

"Pouco Esperar"

Arte de Danny O'Connor

Guardas tudo de mim –
não sei se entendes
a ternura da dádiva –
também não te pergunto…
Para quê?
O meu amor é isto:
desejar-te em segredo
pouco esperar do que vier de ti
E nada te pedir.

Maria Aurora Carvalho Homem


terça-feira, 18 de junho de 2013

"Tu"


Fotografia de Andrzej Kciuk

Quando não estás,
são íngremes os muros dos dias
e o frio é fundo…

Tu: palavra de ordem
Santo-e-Senha
Manifesto
de mim.

Teresa Sá Couto


segunda-feira, 17 de junho de 2013



Nos dias tristes não se fala de aves.
Liga-se aos amigos e eles não estão
e depois pede-se lume na rua
como quem pede um coração
novinho em folha.

Nos dias tristes é inverno
e anda-se ao frio de cigarro na mão
a queimar o vento e diz-se
- bom dia!
às pessoas que passam
depois de já terem passado
e de não termos reparado nisso.

Nos dias tristes fala-se sozinho
e há sempre uma ave que pousa
no cimo das coisas
em vez de nos pousar no coração
e não fala conosco.

Filipa Leal


domingo, 16 de junho de 2013

"Testamento"


Arte de Ivan Alifan

Eu, 
Lucille Clifton, 
por este meio atesto
que naquele quarto
havia uma luz
e nessa luz
havia uma voz
e nessa voz
havia um suspiro
e nesse suspiro
havia um mundo.

Um mundo um suspiro uma voz uma luz e
eu
sozinha
num quarto.

Lucille Clifton


sábado, 15 de junho de 2013

"Maiwu"


Arte de Michèle Sato

o pretérito circula
na espiral de labirintos
no tempo sem fim

na dor que hoje vaza 
na rigidez dos erros
na penumbra da casa

mas no caracol esperança
o sorriso cintila
ao renascimento do amanhã

Michèle Sato


sexta-feira, 14 de junho de 2013

"Décimo Andar"


Fotografia de Tommy Ingberg

Há os que optam por fechar os mortos
à chave
nos sotãos ou na cave
da memória
Por mim prefiro deixar os meus à solta
a povoar o meu dia e o jardim suspenso
do meu décimo andar
como pássaro poisando
como músicas indo e vindo
no vento.

Teresa Rita Pinto


quinta-feira, 13 de junho de 2013

"Vespertino"



A tarde cai num silêncio de cansaços 
do sul as nuvens chegam 
como flâmulas 
e sobre nós respiram 
leves as folhas 
de sobreiros e acácias
que perduram

sobre o muro 
esquecido 
aberto o livro:

«não conheci o desvario do amor senão quando me esforcei 
de todas as maneiras por curar-me dele»

eu amava estes lugares onde as sílabas fulgem a floração do corpo

mas as palavras já não têm tal rosto

na tarde que finda 
compõem ainda uma gramática –
a do silêncio

Soledade Santos


terça-feira, 28 de maio de 2013


Arte de Ana Pardo

Por fora, 
trago o sabor 
da amora; 

por dentro, 
uma saudade 
que devora. 

Por fora, 
comemoro 
a vida; 

por dentro, 
sou veia cava 
obstruída. 

Por fora, 
um banquete 
sobre a mesa; 

por dentro, 
essa dinamite 
acesa. 

Morreu o cravo, 
sonhando 
a margarida. 

Pelo próprio espinho, 
se fez a rosa, 
ferida. 

Por fora, 
a poesia move; 

por dentro, 
o verso suicida.

Marcos Caiado


segunda-feira, 27 de maio de 2013

"De Amor"



Despede-te de mim, bate devagar a porta:
tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,
ruínas, tarefas de pão e linho, não dar
nome às coisas senão o de um vago esquecimento,

abandono. Despede-te de mim como se a vida
recomeçasse agora, não me procures onde
a memória arde e o destino se ausenta.

Tudo são banalidades, afinal, quando assim
se recomeça e a vida falha como um material
solar e ilhéu. Levamos poucas coisas, basta
um pouco de ar, os objetos fixos, em repouso,

os muros brancos de uma casa, o espaço
de uma mão. Arrumo as malas e os sinais,
aquilo que nos adormece em plena tempestade.

Francisco José Viegas
(de 'O medo do Inverno', Metade da Vida)


sábado, 25 de maio de 2013

"Não chegamos a ser"


Fotografia de José Luis Mendes

Não chegamos a ser 
Aconchego nas manhãs de domingo
passeio na praia, mãos dadas no jardim

paixão em noites de amor
brisa nas tardes de calor
estréia de filme em sessão lotada

Não chegamos a ser
inverno, meia e cobertor
primavera ou verão
nem acordo ou discussão

Não chegamos a ser paciência, 
nem mesmo fomos sem pressa
nem taça gelada de Ano Novo
sequer um presente de Natal

Não chegamos a ser
reticências, evasivas
nem talvez.

Sequer chegamos a ser.

Dalva Nascimento


sexta-feira, 24 de maio de 2013


Mulher Pássaro, de Roberto Fabelo


Solidão?
quem sabe o que estas asas reservaram?
Ganhar espaços, encontrar pousos, permanecer voando.
Apenas me ausento
em determinadas horas
para ver o que fazem
alguns seres
que viajaram em mim, um dia.
Sinto tristezas espontâneas
e algumas vergonhas alheias.
Sinto asperezas que não desejo.
Quero, enfim, apenas a liberdade
de voar por mim mesmo.

João Victor Velloso


quinta-feira, 23 de maio de 2013

"Dança"


Fotografia de Marina Hushiro


A menina dança sozinha
por um momento.

A menina dança sozinha
com o vento, com o ar, com
o sonho de olhos imensos...

A forma grácil de suas pernas
ele é que as plasma, o seu par
de ar,
de vento,
o seu par fantasma...

Menina de olhos imensos,
tu, agora, paras,
mas a mão ainda erguida

segura ainda no ar
o hastil invisível
deste poema!

Mário Quintana
In Esconderijos do Tempo



quarta-feira, 15 de maio de 2013

"Desci Um Milhão de Escadas"



Fotografia de Tiago Rosado

Desci, dando-te o braço, ao menos um milhão de escadas
e agora que aqui não estás é o vazio a cada degrau.
Mesmo assim foi breve nossa longa viagem.
A minha dura ainda, mas já não me ocorre pensar
nas conexões, nas reservas,
nas ciladas, nos vexames dos que crêem
que a realidade é aquilo que se vê.

Desci milhões de escadas dando-te o braço
e não porque com quatro olhos talvez se veja melhor.
Contigo as desci porque sabia que de nós dois
as únicas verdadeiras pupilas, ainda que tão ofuscadas,
eram as tuas.

Eugenio Montale


terça-feira, 14 de maio de 2013

"Requiescat"



Fotografia de  Maria Avelino

De meu mar, ofereço-te as ondas
e as poéticas conchas 
que minhas praias te trazem
Tais suaves mistérios te concedo,
mais as algas, e as gaivotas
que bicam tecidos de luz na tarde.

Povoados de ti, de mim, 
os barcos que chegam e ardem.

Adere-te, pois, ao sal que em mim te chama,
molha teus pés em espuma e encanto,
cobre teu rosto
nas claras águas que o dia me abre.

(Sosseguem, minhas dorsais;
Descanse meu leviatã escuso.)

Fernando Campanella


segunda-feira, 13 de maio de 2013

"Procura-se"



Desconheço a autoria da imagem

Procura-se
A aurora desperta pelo azul do mar,
A quietude outonal que rasga o dia,
a vida que ressurge rara após noite escura.

Procura-se
a esperança que saiu voando sem rumo,
uma alma alada como pássaro,
que desapareceu entre o céu e o mar.

Procura-se
sonhos pássaros perdidos na névoa tardia,
ventos leves, leves como o pensamento.

Procura-se
uma chance, uma sorte, uma nova saída,
uma ilha, um pouco de paisagem,
um verso capaz de descrever o instante.

Sônia Schmorantz


domingo, 12 de maio de 2013


Pintura de Almada Negreiros

Só na memória do teu rosto, mãe
posso encontrar agora as paredes
da casa onde nasci.
Como se fosse possível voltar
àquele tempo em que a felicidade
residia nas tuas mãos
entretidas a encaracolar os meus cabelos.

Graça Pires


sábado, 11 de maio de 2013

"Casa Trancada"



Fotografia de Kyle Thompson

Que tipo de casa suburbana é o meu peito
Que guarda entre os seus cômodos vazios,
Vultos, sonhos e os anseios mais sombrios
Que de uma criatura singular é de direito?

Que dores percorrem o corredor estreito
E separa o imóvel como margens de um rio?
Qual foi o erro ou desengano que fez vazio
O espaço outrora alegre que envolve o leito?

Casa vazia. Triste como qualquer casa vazia.
Casa que apagou o sorriso de quem se ria
E se trancou com portas e janelas gradeadas.

Casa vadia. Triste como qualquer casa vadia,
Mas nas paredes ainda há quadros e fotografias
Enquanto a vida roda e continua na calçada.

Danilo del Monte


sexta-feira, 10 de maio de 2013

"Desencanto"



Imagem daqui

E na tarde que foge 
Ao correr vou buscá-la.
Contar-lhe todos meus sonhos
pedir sorrisos ao beijá-la.

Mas. . . silenciosa ela zomba
nem me estende suas mãos,
. . . já é fruto de sombra!

Quero luz! não sua morte.
Mas tão lenta e tão triste
. . . já pressente sua sorte.

Lá vai ela. . . pobre tarde
carregada em soluços.
Traz nas cores tantos mundos
. . . de um só mundo que parte!

Alvina  Nunes Tzovenos


quinta-feira, 9 de maio de 2013

"Este é o Maio"


Desconheço a autoria da imagem

Este é o maio,
O maio é este,
Este é o maio e floresce
Este é o maio das rosas,
Este é o maio das formosas,
Este é o maio e floresce.
Este é o maio das flores.
Este é o maio dos amores,
Este é o maio e floresce.

Gil Vicente


quarta-feira, 8 de maio de 2013

"O Anjo na Escada"



Desconheço a autoria da imagem

Na volta da escada,
Na volta escura da escada.
O Anjo disse o meu nome.
E o meu nome varou de lado a lado o meu peito.
E vinha um rumor distante de vozes clamando
clamando...

Deixa-me!
Que tenho a ver com as tuas naus perdidas?
Deixa-me sozinho com os meus pássaros...
com os meus caminhos...
com as minhas nuvens...

Mario Quintana


terça-feira, 7 de maio de 2013



Arte de Danny O’Connor

Esperava de mãos cruzadas sobre a saia do vestido de sonhos.
Alheada do mundo restante, da luz e da sombra, do branco e do negro. 
Tinha tecido uma teia de cores que ninguém via. 
Sentia-se enredada nela, imobilizada. Nem um dedo mexia, naquela espera. 
Só o vestido ondulava, convite a quem conseguisse olhá-la e ver. 
Mas à volta dela, para lá da teia, todos pareciam cegos. Talvez surdos também. 
Porque, embora quieta no sonho com que se vestia, dela saía um grito 
que podia acordar o mundo. Um terrível grito de silêncio. 

Alice Daniel


segunda-feira, 6 de maio de 2013




Agora sou
porto de silêncio que conhece
a rota da madeira,
porta do sótão
e turbilhão de folhas
que, pela cozinha, arrasta o vento.

Agora sou
a casa que conhece
múrmuras colméias,
unhas do gato prateado,
o desatino matinal dos pássaros
e o amor das janelas pelas nuvens.

Ao perfume da erva
após a chuva
une-se o do café.

Do tempo passado
a decifrarmos juntos paredes
de granito e cal
vem-nos doce a fadiga.
Repousemos.

Flor Campino


domingo, 5 de maio de 2013




Se pudesses ver-me assim 
Como me sinto agora
Triste, cansada, e desajeitada

Sou como um simples rochedo
Que canta melodias antigas
Por entre as fragas soltas
De um altar despido

Encontras-me se quiseres
Sempre na ira dos ventos
Nas incandescentes luzes
Que me deixaram despida
No meio do caminho

Tracei nas mãos 
O nosso destino
E vi-te a atravessá-lo 
No in-exacto momento 
De um único fim

Matilde D' Ônix


sábado, 4 de maio de 2013


Instalação  "LedScape", no Centro Cultural de Belém, em Lisboa (aqui)

Eu te sonho em noite de luares
Em dias de sol e debaixo da chuva.

Eu te canto em versos, em prosa
Em vírgulas e reticências...

Eu te desenho nas nuvens
Na folha branca e no arco-íris.

Eu te vejo nas flores
No vôo dos pássaros
E no brilho dos meus olhos.

Lou Witt


sexta-feira, 3 de maio de 2013


Arte de Mark Keller

Eu amo na frequência que amam os loucos
Eu amo por necessidades de preenchimento
Eu amo até transbordar
Eu amo dos pés a cabeça e
Depois
Amo de ponta Del Leste
Ao agreste que anda meu coração
Eu amo tão desesperadamente
Tão verdadeiramente
Tão sem truques
Planos
E efeitos
Tão sem jogos e conceitos
Que sempre me sobra
Um vazio na mão.

Talles Azigon

quinta-feira, 2 de maio de 2013

"Travessia"



Arte de Karol Bak.

Onde 
tenho estado
onde estou
Para onde foi a minha vida
A vivida
A que está por viver
Se tivesse sido outra
Seria a mesma outra
Não tenho mais vida
Para além desta
Que me vive.

Glória Gervitz


terça-feira, 30 de abril de 2013

"Fascinação do Mar"



"Flying Mermaids", by Richard Ficker

Sonhei com o mar. Ele era terrível
como a cólera de Deus.
E também era belo e era grande
como a misericórdia de Deus.

Olhei o mar. E ele era triste
na solidão e profundeza de suas águas.
E também era louco e poeta
no seu mistério e em suas viagens sem caminho.

Aproximei-me do mar. E ele pérfido
com suas algas e seus milenares abismos.
E também era repousante
com suas ilhas e seus vergéis nascentes.

Fui para o mar. E ele era bárbaro
no acolhimento rumoroso de suas ondas.
E também era a graça, o espírito,
na revoada de suas espumas e gaivotas.

Amei o mar: ele era um deus humano
com seus demônios e seus anjos em liberdade. 

Henriqueta Lisboa


segunda-feira, 29 de abril de 2013

"In Articulo Mortis"




Que nos importa que a lua morta tenha ou não tenha traços 
Do antigo mundo que viveu rindo?
Que seja cinza o que era calor ao calor dos nossos abraços?
De nada nos serve...Fechemos os olhos, cruzemos os braços.
E desesperemos, sorrindo.

A vida é pouco e a dor é muito. Ao luar e à noite esquecemos
O nosso ser de sob o sol;
E já que a corrente nos leva silente, abandonemos os remos;
E visto o falar a a
ção nos lembrar, calemo-nos, escutemos:
Talvez cante o rouxinol.

E daí quem sabe na noite o que cabe? Da solidão infinda
Talvez raie um sol e um dia,
E à barca que erra...talvez uma terra lhe espere obscura a vinda.
Talvez não seja o rouxinol que cante...Esperemos ainda,
E talvez seja a cotovia.

Fernando Pessoa


domingo, 28 de abril de 2013

VII




Arte by Jannette Brunel


parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meu deus

e eu sou o seu profeta

Paulo Leminski




sábado, 27 de abril de 2013




Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti.
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento, desabam no abismo.

Que sabes tu do fim?
Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas.

Conserva a ilusão de que teu vôo te leva sempre para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão,se pressentires que amanhã estarás mudo,
esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta.

Canta! Canta para conservar uma ilusão de festa e de vitória.
Talvez as canções adormeçam as feras que esperam devorar o pássaro.
Desde que nasceste não és mais que um voo no tempo. Rumo do céu?

Que importa a rota.Voa e canta, enquanto resistirem as asas.

Menotti Del Picchia


sexta-feira, 26 de abril de 2013


"Tango Argentino", by  Willem Haenraets 

Vem, 
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.

Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.

Cada átomo
Feliz ou miserável, 
Gira apaixonado
Em torno do sol.

Rumi


quinta-feira, 25 de abril de 2013

O amor não se adia



Desconheço a autoria da imagem

Certas coisas
não se podem deixar para depois,
e nisto incluo: frutos no galho,
mudanças sociais,
certas coxas e bocas
e esta manhã que se esvai.

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

O amor não se adia
como se adiam o imposto, a viagem, a utopia.
O desejo sabe o que quer,
detesta burocracia.

Affonso Romano de Sant'Anna





quarta-feira, 24 de abril de 2013

"Onde Está?"



Desconheço a autoria da imagem

Por onde está o amor? Jaz, solitário
nas brumas do desejo e da loucura...
Nos desvarios vãos do imaginário
das vidas sem verdade, sem ternura.

Exangue, por ser servo involuntário
da vil paixão, que só corpos procura...
O amor padece as dores do calvário
e desfalece em mãos de vida impura.

O amor, do cortejar, da ingenuidade,
que abarca compreensão, cumplicidade...
Em poucos corações é vera chama.

Em raros... Mas, por ceto, ele resiste
e grita o seu cantar, alegre ou triste,
nos versos do poeta... que ainda ama!

Patrícia Neme
in Sonetos de Dor Maior


terça-feira, 23 de abril de 2013



Desconheço a autoria da imagem

Falei de ti com as palavras mais limpas

Viajei, sem que soubesses, no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,

tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.

Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei da parcimônia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.

Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando, sem que soubesses, por tudo o que fazias.

Fernando Assis Pacheco


segunda-feira, 22 de abril de 2013


Fotografia de Camila Schenke

Sinto-me toda igual às arvores:
Solitária, perfeita e pura.

Aqui estão meus olhos nas flores,
Meus braços ao longo dos ramos:
E, no vago rumor das fontes,
Uma voz de amor que sonhamos.

Cecília Meireles


domingo, 21 de abril de 2013

"Queria"


Desconheço a autoria da imagem

Queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos.

Ana Paula Inácio


quarta-feira, 27 de março de 2013

"Travessia"



Desconheço a autoria da imagem

Amo-te — ela murmurou-lhe ao ouvido.
Ele acreditou.
E foram representar a palavra 
para um banco de jardim,
o rio morrendo-lhes nos olhos, 
quase no mar.
Ela deu-lhe a boca. 
Ele acreditou na travessia, 
no castelo do outro lado. 
Inventou um barco. 
Um remo para ele, outro para ela. 
Mas não atravessaram o sonho. 
Vagaram em círculo, sempre o mesmo círculo.

Ela não remou.

Vitorino Ventura


terça-feira, 26 de março de 2013

"Cansaço"



Desconheço a autoria da imagem

Por trás do espelho quem está
De olhos fixados nos meus?
Alguém que passou por cá
E seguiu ao deus-dará
Deixando os olhos nos meus.
Quem dorme na minha cama,
E tenta sonhar meus sonhos?
Alguém morreu nesta cama,
E lá de longe me chama
Misturada nos meus sonhos.
Tudo o que faço ou não faço,
Outros fizeram assim
Daí este meu cansaço
De sentir que quanto faço
Não é feito só por mim.

Luís de Macedo



segunda-feira, 25 de março de 2013




Imagem daqui

Vamos fazer limpeza, mas geral
e vamos deitar fora as coisas todas
que não nos servem para nada, essas
coisas que não usamos já e essas
que nada fazem mais que apanhar pó,
as que evitamos encontrar porquanto
nos trazem as lembranças mais amargas,
as que nos fazem mal, enchem espaço
ou não quisemos nunca ter por perto.

Vamos fazer limpeza, mas geral,
talvez melhor ainda uma mudança
que nos permita abandonar as coisas
sem sequer lhes tocar, sem nos sujarmos,
que fiquem onde sempre têm estado;
vamos embora só nós, vida minha,
para voltar a acumular de novo. 

Ou vamos deitar fogo ao que nos cerca
e ficarmos em paz com essa imagem
do braseiro do mundo face aos olhos
e com o coração desabitado.

Amalia Bautista



Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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