Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

domingo, 24 de novembro de 2019

No chão da água luava um pássado



Fotografia daqui

No chão da água
luava um pássaro
por sobre espumas
de haver estrelas

A água escorria
por entre as pedras
por um chão sabendo
a aroma de ninhos.

Manoel de Barros
in O Menino e o Córrego



Visitas


Imagem via Pinterest

Através da noite urbana de pedra e seca
o campo entra no meu quarto.
Estende braços verdes com pulseiras de pássaros,
com fivelas de folhas.
Leva um rio à mão.
O céu do campo também entra,
com o seu cesto de jóias acabadas de cortar.
E o mar senta-se ao meu lado,
estende a sua cauda branquíssima no solo.
No silêncio brota uma árvore de música.
Na árvore pendem todas as palavras formosas
que brilham, amadurecem e caem.
Na minha testa, uma caverna onde mora um relâmpago...
Porém, tudo se povoou com asas.
Diz-me: é deveras o campo que vem de tão longe,
ou és tu, são os sonhos que sonhas ao meu lado?

Octavio Paz



Tentava escrever




Imagem via Pinterest

I

Tentava escrever

com a minha mão direita,
com a minha mão esquerda, alma corpo inteiro

o esboço - o esboço aparente

fuligem da sílaba e silêncio, raiz
de pássaro transitório que teima crescer intacto

a carvão

como asa a traço de sombra caliça
que acontece

contorno - em luz placenta
grão do barro,
devagar. Em silêncio

tentava escrever e

acontecia - por acontecer
como esboço apátrida - aparente

- o corpo

II

e no veio, na voz

no afluente da asa
quase

corpo inteiro

…..

tentava escrever

as artérias da sombra - todos os traços, o sopro da cinza - todas

as palavras, visíveis e invisíveis.

(...)

..........

breve Leonardo



Cela


Fotografia via Pinterest

faz do teu olho
a entrada
usa a chave roubada

Lucia De Moura Chamma






Gérberas



 Imagem da Web

São as gérberas tuas preferidas?
Gérberas me tornarei!
Que devoção maior queres tu
Do que um corpo que se transforma em flor?

Cari Lobo










Nosso amor não é de barro




Ilustração Jeremy Scott

quando me debruço sobre ti
e danço na pontinha dos pés
a valsa dos berloques e das pérolas
Sou Esplendor

quando a cada sílaba pausa etecetares
colho-te onde me abres flor
Sou Reflexo

quando o coração batiza
e me concede tua
Sou Amor

sede avidez sem qualquer lucidez
Somos Primavera

Lucia De Moura Chamma




No momento da mão do carrasco



Desconheço a autoria da imagem
Eu amo você, é, eu te amo

Eu te amo com amor de poeta
Quietinho como um claustro

Com um silêncio tão gritante
Quanto uma multidão feudal

Em torno do patíbulo
No momento da mão do carrasco

Cari Lobo











Oco e incerto


 (Desconheço a autoria da imagem)

fui domingo, de certo 
oco e incerto
- o que fica claro é o turvo -
que espalho sem medo 
o peso de travas 
que invento ao olhar pelo retrovisor 
- eu vou -
a luz, meus óculos escuros, pois tá tudo tão claro, 
as mazelas dos palácios que se consomem com sua própria lama
- vejo mudanças.

no silêncio
- um horizonte de leves sonhos -
noite

Renato Reis



quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Decantei o desejo




Imagem da Web
 
Decantei o desejo
em províncias distantes
O eco traduziu em Esperanto
cada partícula do meu tanto.
Ouço andantes noturnos
nos cantos dos meus espantos
Em névoas lontanas
o sexo encarnado
instila desejos
O eco traduziu em Esperanto
o que soletra o orgasmo
na esteira do meu pranto

Sonia Clara Ghivelder



Canção do Amor Sereno

Imagem via Pinterest

Vem sem receio: eu te recebo
Como um dom dos deuses do deserto
Que decretaram minha trégua, e permitiram
Que o mel de teus olhos me invadisse.

Quero que o meu amor te faça livre,
Que meus dedos não te prendam
Mas contornem teu raro perfil
Como lábios tocam um anel sagrado.

Quero que o meu amor te seja enfeite
E conforto, porto de partida para a fundação
Do teu reino, em que a sombra
Seja abrigo e ilha.

Quero que o meu amor te seja leve
Como se dançasse numa praia uma menina.

Lia Luft



Muito prazer


 
Pintura e colagem de Ekaterina Panikanova

Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam.
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.
Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin

O dia vai morrer aberto em mim.

Manoel de Barros



Para uso diário


Sexy Lady Retro Card, in Etsy

Se a vida não fosse tão insubstituível
talvez ousássemos utilizá-la.
Porém arrumamo-la na prateleira
como um vistoso par de sapatos
que é bonito de se ver
mas não para uso diário.
Assim, continuamos por aí sentados
numa expectativa descalça.

Margareta Ekström



Inteiros




Ilustração: Three Sisters, de Gianni De Conno

Sei que sou
meio
previsível
meio
explícita
meio
simplória
meio
inocente

Mas
minhas outras metades
não são.

Rossana Masiero



A palavra do mar


 
 Arte de Winslow Homer

Se o mundo não tivesse palavras
a palavra do mar, com toda a sua paixão,
bastava. Não lhe falta
nada: nem o enigma nem
a obsessão. Entregue ao seu ofício
de grande hospitaleiro
o mar é um animal que se refaz
em cada momento.
O amor também. Um mar
de poucas palavras.

Casimiro de Brito

Oferta



 Fotografia de Leszek Paradowski

O que tenho para te dar? Uma gramática de sentimentos,
verbos sem o complemento de uma vida, os substantivos
mais pobres de um vocabulário íntimo — o amor, o desejo,
a ausência. Que frase construiremos com tão pouco? A
que léxico da paciência iremos roubar o que nos falta?

Então, ofereço-te uma outra casa. As paredes têm a
consistência do verso; o teto, o peso de uma estrofe.
Abro-te as suas portas; e o sol entra pela janela de
uma sílaba, com o seu logo vocálico, como se uma
palavra pudesse aquecer o frio que te envolve.

E pergunto-te: que outras palavras queres? A música
sonora de um ócio? O espesso manto com que o veludo
se escreve? O fundo luminoso do azul? Poderia dar-te
todas as palavras na caixa do poema; ou emprestar-te
o canto efêmero em que se escondem do mundo.

Mas não é isso que me pedes. E a vida que pulsa
por entre advérbios e adjetivos esfuma-se depressa,
quando procuramos seguir a linha do verso, O que fica?,
perguntas-me. Um encontro no canto da memória. Risos,
lágrimas, o terno murmúrio da noite. Nada, e tudo.

Nuno Júdice



O grito



 Arte Rupestre de Lascaux

se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos
se ao menos esta dor visse
se ela saltasse fora da garganta
como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse
se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir saliva fora
sujar a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre e tem o direito de não sofrer
se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas
se ao menos essa dor sangrasse…

Renata Palottini



A tua morte é sempre nova em mim





 Imagem via Pinterest

A tua morte é sempre nova em mim.
Não amadurece. Não tem fim.
Se ergo os olhos dum livro, de repente
tu morreste.
Acordo, e tu morreste.
Sempre, cada dia, cada instante,
a tua morte é nova em mim,
sempre impossível.

E assim, até à noite final
irás morrendo a cada instante
da vida que ficou fingindo vida.
Redescubro a tua morte como outros
redescobrem o amor,
porque em cada lugar, cada momento,
tu estás viva.

Viverei até à hora derradeira a tua morte.
Aos goles, lentos goles. Como se fosse
cada vez um veneno novo.
Não é tanto a saudade que dói, mas o remorso.
O remorso de todo o perdido em nossa vida,
coisas de antes e depois, coisas de nunca,
palavras mudas para sempre, um gesto
que sem remédio jamais teve destino,
o olhar que procura e nunca tem resposta.

O único presente verdadeiro é teres partido.

Adolfo Casais Monteiro



sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Metade


Desconheço a autoria da imagem

Metade mulher metade pássaro
Metade anêmona metade névoa
Metade água metade mágoa
Metade silêncio metade búzio
Metade manhã metade fogo
Metade jade metade tarde
Metade mulher metade sonho.

Jorge de Sousa Braga


Nos olhos de Isa

 
 Arte digital, by Lynyrd

Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite
Acende fogueiras.

Os meus olhos param. Nos olhos de Isa.

Oh, nos olhos de Isa espreguiça-se a madrugada
E o vento acorda para ajudar os pássaros a voar
E as árvores a acenar-lhes uma bandeira de folhas, uma tristeza verde.

Nos olhos de Isa.

Nos olhos de Isa a manhã explode num inferno de estrelas,
Num clarão de silêncio, em estilhaços de rosas, pétalas de sombra.

Nos olhos de Isa os poetas vagueiam num bosque de mel
Onde as abelhas constroem a tarde
Desesperadamente.
Nos olhos de Isa ninguém repara na minha solidão.

Joaquim Pessoa



Feltro





 Imagem da Web

[ao ouvido]

diz-me o caminho diz
onde diz como e com
que palavras e sem
que palavras e diz - mas
baixinho cuidado não
faças barulho não digas
antes que chegue
o nome e o sentido
do que devagarinho
queima entre um
silêncio e outro.

Sarah Adamopoulos





terça-feira, 12 de novembro de 2019

Sobre



 Fotomontagem de Monika Carvalho

Tento intento sedento
Por fora, por dentro
Perdido por um momento
Senti-me
Sem ti
Sem ti, manto-me
Sem ti, mato-me
Sem ti, minto-me
Sentimento
Sobre fronte
Sem ornamento

Eupaitio Caska




Alta, a Rainha



Ziegfeld Girl, Hedy Lamarr, 1941 Photo

alta, entre os pássaros,
de luz apenas trespassada,
fina como as farpas
do vento que se enreda
nos ramos, campanários.

alta, sobre as espáduas
dos montes arqueados,
com seus filhos descalços
e os bichos sempre ao lado.
( a criação neles refaz
seu ciclo de milagres.)

alta e perene, desliza
entre os astros. e alastra
no espaço um rastro
de adágios outonais
que lhe celebram as bodas
e os jogos conjugais.

a casa a espera em paz
com suas claras vidraças
e seu rumor estival,
os bichos todos e as plantas,
o pai ancestral à porta
e os filhos reais descalços:
cada coisa em seu lugar
e mais a lua entornada
sobre o leito nupcial.

alta e silente, entra
pé ante pé a rainha,
tateia as paredes mudas,
fala às aias e aos eunucos
e adormece entre nuvens
sem despertar o seu rei
a quem antes se entregara
e depois furtara o reino
para vê-lo recriado.

Ivan Junqueira



Guarda-chuva


Imagem via Pinterest

o
meu coração tem
forma de guarda-chuva
sob
ele
es
tás
a
sal
vo

xilre



Canção de ninar



Imagem via Pinterest

 
(para uma criança da favela)

Criança, és fio d’água
Triste desde a fonte,
Humilde plantinha
Nascida em monturo:
Quanta ausência mora
Nesse olhar escuro!

Recosta a cabeça
Na minha cantiga.
Deixa que te envolva,
Que te beije e embale.

Helena Kolody
in Vida Breve, 1964



 

Meu amor, meu amor



Arte de Talantbek Chilirov 

Meu amor meu amor
meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu punhal a escrever
nós paramos o tempo não sabemos morrer
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.

Meu amor meu amor
meu nó e sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento

este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar
e morremos morremos
devagar devagar.

José Carlos Ary dos Santos



Amostra sem valor



Cena da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,

Universo sou eu, com nebulosas e tudo.

António Gedeão




Tentei fugir da mancha mais escura


Colagem de Lucia de Moura Chamma

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão …

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.

David Mourão-Ferreira



Se eu pudesse iluminar por dentro



Ilustração Ulrike Bobnz

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guia
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva

José Gomes Ferreira




terça-feira, 5 de novembro de 2019

Poema sobre o peito que sonhava filhos




Fotografia de Aaron Nace. no Flickr - "Staying"


para o josé félix duque

àquele homem saíam-lhe crianças do peito,
encostava-se de socorro ao muro e não dizia nada.
os meus olhos de infelicidade viam-nas partir,
mas um dia, contava, teria um filho, um filho que ficasse.
e as mulheres abeiravam-se dele
para lhe explicarem a maternidade e ele nada escutava.
porque, ao longe, as crianças do seu peito faziam travessuras parecidas
às dos filhos e, de tempos a tempos, uma delas vinha mais perto.
ele não resistia a sentir esperança.
já o coração falhava de tanto acreditar.
e as mulheres colocavam-se entre ele e os estranhos seres,
e o homem seguia o seu caminho entre as sombras como promessa de mãe.


valter hugo mãe


Soneto à tua volta



Imagem via Facepage Microcontos

Voltaste, meu amor... enfim voltaste!
Como fez frio aqui sem teu carinho.
A flor de outrora refloresce na haste
que pendia sem vida em meu caminho.

Obrigado... Eu vivia tão sozinho...
Que infinita alegria, e que contraste!
-Volta a antiga embriaguez porque voltaste
e é doce o amor, porque é mais velho o vinho!

Voltaste... E dou-te logo este poema
simples e humilde repetindo um tema
da alma humana esgotada e envelhecida...

Mil poetas outras voltas celebraram,
mas, que importa? – se tantas já voltaram
só tu voltaste para a minha vida...

J. G. de Araujo Jorge



A coruja




 Imagem via Pinterest

São todo ouvidos
os teus olhos
de vigília.

Olhos acesos,
luzeiros
de sabedoria.

Olhos atentos
à geografia
do dentro

És uma concha.

Um encorujado
caramujo.

Monja em voto de silêncio.

Sérgio de Castro Pinto
in Zôo Imaginário



Bolhas


Fotografia de Warren Photography, em Flickr

Olha a bolha d'água no galho!
Olha o orvalho!

Olha a bolha de vinho na rolha!
Olha a bolha!

Olha a bolha na mão
que trabalha!

Olha a bolha de sabão na ponta da palha:
brilha, espelha e se espalha.
Olha a bolha!

Olha a bolha que molha
a mão do menino:

A bolha da chuva da calha!

Cecília Meireles





Lavanda



Embracing the future, escultura de Thomas Blackshear

Macio, quente, protetor,
com perfume de lavanda,
era teu colo mãe!

Tudo na casa tinha aquele cheiro.
- É para ter sonhos liláses -
dizias, estendendo os lençóis.

E agora mãe, já velhinha,
teu cabelo tem além do perfume,
a cor da flor!

Lenise Marques


Um olhar amadurecido


arte de Kebba Sanneh

Meus olhos deixaram de ser estrelas
iluminando a negra noite,
quando você me escondeu o luar.

Deixaram de ser faróis na neblina
à procura do horizonte,
quando, sozinha, eu me coloquei a vagar.

Nem são mais contas reluzentes
adornando o seu despertar,
quando você fez nosso elo arrebentar.
Meus olhos estão amadurecidos,
porque foram esquecidos
pelo seu olhar.

Marise Ribeiro


Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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