Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

domingo, 23 de abril de 2023

Todo dia

 

Fotografia de Vangelis Efthymiou
 

 Todo dia acordo do mesmo lado,
desço a mesma escada,  e o som
dos meus passos repetitivos me diz:
onde ...? onde...? onde...?

Todo dia atravesso a mesma praça,
na partida e na chegada, e o canto
dos pássaros na árvore me diz :
quando ...? quando ...? quando...?

Todo dia eu pego o mesmo ônibus,
que me leva e me traz,
e o murmuro das pessoas nos bancos me diz :
como...? como...? como...?

Toda noite, eu durmo e sonho com as
múltiplas  possibilidades
para os muitos  
onde...? como...? quando...?

Quando acordo pela manhã, os sonhos
se recolhem ao esquecimento,
para que a vida possa recomeçar de novo,
sem onde, quando e como.

Margoh Werneck



Espreguiçados

 


 Espreguiçados, os ramos  das
palmeiras filtram
a luz que sobra
do dia.  É já é noite
nas folhas. O branco
das paredes recolhe
o sangue e o vinho
de buganvílias
e hibiscos. Bebe-os
de um trago: saberás
que, mais do que a cegueira, a noite
é uma embriagues perfeita.

Albano Martins




sábado, 22 de abril de 2023

Diz-me que pedra é essa

 

Desconheço a autoria da imagem

 Diz-me que pedra é essa
Onde te deitas desconfortável
Em cada noite.

Os ossos absorvem o frio,
Acomodam-se à irregularidade
Dos veios que irão

Assinalar os pontos mais sensíveis
Do território íntimo,
Aquele onde se sente mais

A pontada de frio
Quando não se adormece.
E a garganta,

Limite de ansiedades e sobrevoos,
Retrai-se
Como um fruto encarquilhado

Já sem seiva
Ou sabor possíveis.
Diz-me

Onde está a fronteira
Entre o espaço que ocupas
E o deserto que olhas.

Rui Almeida

 

 

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Averno

 

Desconheço a autoria da imagem

 ...

Fui jovem aqui. Andava
de metrô com o meu livrinho
como se procurasse defender-me

deste mesmo mundo:

não estás sozinha,
dizia o poema,
no túnel escuro.

(excerto)

Louise Glück

 

 

 

Cabeça, coração

 

Imagem via Fotovika

O coração chora.
A cabeça tenta ajudar o coração.
A cabeça diz ao coração como são as coisas, outra vez:
Vais perder quem amas. Todos se irão. Até a Terra se irá, algum dia.
O coração sente-se melhor, então.
Mas as palavras de cabeça não duram muito nos ouvidos do coração.
É tudo muito novo para o coração.
Eu quero-os de volta, diz o coração.
A cabeça é tudo o que o coração tem.
Ajuda, cabeça. Ajuda o coração.


Lydia Davis 

 

 

Sem depois

 

Desconheço a autoria da imagem

 Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.
 
Mia Couto

 

 

 


quarta-feira, 19 de abril de 2023

Promessa

 

Imagem via Pinterest

 lá vem
minha melancolia
doce que nem chuva
mansa
que nem tarde no mar
… caju, uvas e maracujás…

e vem
a dançar a cantar
delicadezas
infinitos futuros
nossos encontros…

vem
que minha tristeza
te espera
feito pele
a sonhar e suspirar
promessas…

Paulo Laurindo

 

 

 

Lamento

 

Imagem via Pinterest

 Costumavas vir
Pela vereda
Onde às vezes
À tardinha
Colhias amoras
Com que enfeitavas
Em devaneio
A harmonia dos dias.
Esperava-te
No laranjal
Onde as mãos
Ansiosas
Absorviam o olhar
Com vestes de ternura.
O tempo
Passava ao lado
E sentíamos
Na paixão das cigarras
A razão mais próxima
Da cumplicidade das estrelas
E até a brisa
Conciliadora
Espalhava no ar
O perfume das laranjeiras.

Hoje não vieste
E só eu
Sem esteio
Senti a dor da tua ausência.

A.C.

 

 

 

 

Tal como qualquer cidade

 

Imagem via Pinterest

 Tal como qualquer cidade
também nós escondemos
turvos itinerários, edifícios arruinados,
escuras vielas de rancor ou desejo,
arrabaldes de medo ou parques para o amor,
cantos em penumbra onde ocultar segredos,
praças que nunca visitamos
e aborrecidos museus onde expor lembranças
que não interessam a ninguém.

A nós
também nos habitam cidadãos terríveis:
funcionários do tédio,
mensageiros de moto levando para muito longe
o pequeno embrulho - primoroso e com laço -
dos remorsos.

Viajantes que passam por nós
com as suas malas a caminho de outros corpos
e sobretudo
transeuntes alheios à nossa própria vontade,
incivis e teimosos;
têm nomes ridículos
tal como os sentimentos amor, rancor ou medo
e especulam - como vulgares comerciantes -
com o preço
por metro quadrado do nosso coração.

Silvia Ugidos 

 

 


sábado, 15 de abril de 2023

Como chamar faca

 

Art of paper cut-outs by Pippa Dyrlaga

 Como chamar faca
tanto aquela
enfiada na fruta
quanto aquela
enfiada no peito?
como chamar fruta
tanto o sol polpudo da laranja
quanto a lua doce da lichia?
como chamar peito
tanto o peso oco do meu coração
quanto o peso oco do seu coração?

Ana Martins Marques



 

 

 

domingo, 9 de abril de 2023

Vulgar

 

Desconheço a autoria da imagem


O meu gato deixa-se ficar
em casa, farejando o prato
e o caixote das areias. Já não vai
de cauda erguida contestar o domínio
dos pedantes de raça, pelos
quintais que restam. O meu gato
é um gato vulgar, um tigre
doméstico dos que sabem caçar ratos e
arreganhar dentes a ordens despóticas. Mas
desistiu de tudo, desde os comícios noturnos
das traseiras até ao soberano desprezo
pela ração enlatada, pelo mercantilismo
veterinário ou pela subserviência dos cães
vizinhos. Já falei deste gato
noutro poema e da sua genealogia
marinheira, embarcada nas antigas
naus. Se o quiserem descobrir, leiam
esse poema, num livro certamente difícil
de encontrar. E quem procura hoje
livros de poemas? Eu ainda procuro,
nos olhos do meu gato, os
dias maiores de Abril.


Inês Lourenço

 

 

Diário

 

Fotografia de Willy Ronis


 Faço a cama todos os dias, tento preservar a ordem do meu mundo.

Lavo pratos, copos, talheres, quero dizer, enfio-os na máquina.
Mantenho limpos os vidros das janelas.
Lavo o corpo, os dentes, a roupa, do corpo e da cama, quero dizer, enfio-a na máquina, há máquinas para tudo.

Não moro sozinha, moro com dois gatos e vaso nenhum com planta
Compro os víveres no supermercado.
Chego a sexta-feira com uma garrafa de vodka e duas maçãs mirradas no frigorífico.
Já plantei couves, alfaces, árvores de fruto.
Já escrevi cartas ridículas, tenho esta estranha mania de ser sincera.
Tenho vergonha de erros ortográficos.
Valorizo a etimologia.

Tento perceber o oposto de todas as coisas, mesmo da bondade.
Não tenho a virtude da paciência, nem sei se é virtude.
Sou feliz só porque não trabalho num talho.
Não como outros animais.

Evito ter contas por pagar.
Ando a pé mesmo quando chove.
Preciso urgentemente de comprar um guarda-chuva novo.
Fumo, o que não é qualidade.
Não prescindo da mentira, o que nem sempre é defeito.
Vou ao teatro e respiro.
Leio os meus poetas e sufoco.
Evito a televisão.
Não sei o que fazer com a minha solidão.

Sei fazer chá, o que, convenhamos, não é difícil, e compota de abóbora.
Não me lembro da última vez que ri até às lágrimas.
Nunca fiz uma revolução.
Agora sei que fui feliz em Florença.
Lembro-me de várias as vezes que fiquei de coração partido e como diz a canção: o amor só é bom se doer.
 
Às vezes tenho vontade de abraçar desconhecidos.
Garimpo a beleza das coisas, os pormenores insignificantes da vida.
Comovo-me com a ferrugem na ferragem da varanda.
Não tenho varanda e penso na distância entre o dia de hoje e a minha morte.

E sei que a vida apesar de breve cansa.

Raquel Serejo Martins

 

 

Não é possível segurá-la

 

Arte de Brooke Shaden - "The Quiet Death"

  Não é possível segurá-la,
passa pelo toque
corre pela pele,
se esvai pelos entres,
se junta ao que molha
ou seca no invisível;
me deixa lembranças
temperadas de sal.

Nataly Cavalcantti

 

 

 

Não desvies os olhos

 

Fotografia de Dalva Nascimento


 Não desvies os olhos: vejo neles a nossa casa,
virada a nascente, recolhendo a imprecisa luz
do amanhecer.
Deixa-me pintar, nas paredes, o canto
das andorinhas, que nos atravessam os dias
em pleno verão, ou, diz-me tu, o silêncio
das cigarras ao final da tarde.

Graça Pires

 

 

 

 

sábado, 8 de abril de 2023

Quem foi

 

Fotografia de Dalva Nascimento

Quem foi que, em minha ausência, regou flores
E me foi bom limpando a casa amiga?
Quem arrumou meus livros - os melhores
Postos no centro - em minha estante antiga?

Quem pôs em seu lugar essas cadeiras
Que desde muito o procuravam quedas,
E, com boas e anônimas maneiras,
Acomodou cortinas como sedas?

Foi qualquer fada, que me amou outrora
Antes que o tempo e o espaço fossem Deus?
Não sei, mas tenho a minha casa agora
Limpa e fechada contra a terra e os céus.

Fernando Pessoa

 

 

 

Fotografia

 

Fotografia de Julia Lillard

faço fotos
de horizontes
que não posso
carregar
nesta curva
do caminho
deponho
meu cesto
pejado
de sonhos
e cicatrizes

Marcia Vinci

 

 

terça-feira, 4 de abril de 2023

Abstrato jardim

 

Fotografia de Krzysztof Golik    

   Mesmo sem cisco
meus olhos amanheceram
vazados

gotejando retalhos
da tua sombra pelo caminho

e assim esvai-se
mais um dia em que as horas
se prolongam crestadas!

Só o bailado leve das avencas
em meu abstrato jardim

À espera de que esse hiato
derrube os muros do tempo
para não enferrujar a saudade!

José Carlos Sant'Anna

 

 

 

 

Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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