Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

As minhas ovelhas


fotografia de Hugh Kretschmer

Eu cuidarei das ovelhas órfãs,
elas serão para mim depois da guerra.
Eu lhes darei o pão, abrigo e delírios,
improvisaremos todas às noites
serenatas infantis, roubaremos as vozes dos insetos.
Eu serei delas de sol a sol. 
Depois que fecharem o comércio,
as levarei para passeios noturnos.
Faremos caminhadas pela floresta,
permitirei que comam o orvalho
morto estirado sobre as folhas.
Juntos aprenderemos a conduzir 
a chuva para lugares estranhos,
daremos nomes aos trovões.
Eu porei fotografias das minhas ovelhas
em estampas de camisetas
com frases em língua forasteira,
ganharei o dinheiro para acender 
a fogueira onde nos aqueceremos:
“keep calm and kiss a sheep”, 
“live love dream. Be a sheep.”,
“enjoy the world like a sheep.” 
Elas se amarão no jardim do Éden, 
no limbo, ou em Andaluzia.
Comprarei para elas casas noturnas,
onde não haverá músicas de plástico.
Aprenderão a dançar ao redor do planeta,
lhes contarei toda a vida de García Lorca,
depois amaldiçoaremos os covardes.
Algumas terão pensamentos cor de rosa,
as tímidas usarão brincos e cabelos vermelhos,
não tomarão veneno às sextas-feiras.
As minhas ovelhas terão suas religiões,
ou poderão não acreditar no que veem. 
Eu serei para elas, usarei roupas simples,
comerei o necessário para caminhar,
beberei a água das árvores.
Eu amarei as minhas ovelhas,
antes do amanhecer olharemos o céu,
exercitaremos nossa imaginação.
A cada uma será dado o tempo
para contar a história da sua viagem.
Eu lhes direi o segredo dos pássaros,
seus atrevimentos com as nuvens.
Eles não fecham os olhos ao vento,
não têm receio das alturas.
Os pássaros são muito românticos.
Minhas ovelhas e eu, entre estátuas crucificadas,
estaremos iniciando mais um dia,
com os nossos passos condenados sobre a Terra.

Edmir Carvalho Bezerra

sexta-feira, 10 de novembro de 2017


Imagem: Google

há um pouco de cansaço em mim
há uma curva, sinistra ou sinuosa, 
à esquerda do mundo, do peito
do meu país sangrento

meu coração à esquerda , estraçalhado,
esmigalhado no asfalto,
à esquerda sangrando
sem cerimônia de adeus

meu país foi comprar cigarros
e não voltou mais

Patricia Porto


terça-feira, 7 de novembro de 2017

Vem ver-me

                                                               
"Torque de repouso"_ desenho de Fred hatt

Vem ver-me antes que morra de amor - o sangue
arrefece dentro do meu corpo e as rosas desbotam
nas minhas mãos. Da minha cama ouço a tempestade
nos continentes; e já quis partir, deixar que o vento
levasse a minha mala por aí; fiz planos de correr mundo
para te esquecer - mas nunca abria a porta.


Vem ver-me enquanto não morro, mas vem de noite - 
a luz sublinha a agonia de um rosto e quero que me recordes
como eu podia ter sido. Da minha cama vejo o sol
tatuar as costas do meu país; e já sonhei que o perseguia,
que desenhava o teu nome no veludo da areia e sentia
a vida pulsar nessa palavra como o músculo tenso
escondido sob a pele - mas depois acordava e não ia.


Vem ver-me antes que morra, mas vem depressa -
os livros resvalam-me do colo e o bolor avança
sobre a roupa. Da minha cama sinto o perfume das folhas
tombadas nos caminhos. O Outono chegou. E o quarto
ficou tão frio de repente. E tu sem vires. Agora
quero deitar-me no tapete de musgo do jardim e ouvir
bater o coração da terra no meu peito. Os vermes
alimentam-se dos sonhos de quem morre. E tu não vens.

Maria do Rosário Pedreira
Canto do Vento nos Ciprestes
(2001)



quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Arte taciturna




Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.

Dylan Thomas
(Tradução: Ivan Junqueira)



terça-feira, 31 de outubro de 2017

Soneto da perdida esperança

Hoje é aniversário do poeta. Salve, salve Drummond. O nascer do sol de Copa é pra você.

Perdi o bonde e a esperança. 
Volto pálido para casa. 
A rua é inútil e nenhum auto 
passaria sobre meu corpo.

Vou subir a ladeira lenta 
em que os caminhos se fundem. 
Todos eles conduzem ao 
princípio do drama e da flora.

Não sei se estou sofrendo 
ou se é alguém que se diverte 
por que não? na noite escassa

com um insolúvel flautim. 
Entretanto há muito tempo 
nós gritamos: sim! ao eterno.

Carlos Drumond de Andrade


sexta-feira, 27 de outubro de 2017

De alma e de corpo


Imagem: Pinterest

quando me despi de todas as vontades, 
passei fome. 
a coisa faminta escravizou o que eu era, 
emudeceu o que eu seria. 
e na letargia da pele cinza, da rua fria, 
descobri que não nasci pra mudez.
a mudez que me vestia de pudores, 
que me sugava os poderes 
e alimentava predadores.
a tensa e boa nudez da minha alma... 
é a letra crua, cheia de vontades, 
certa de desejos e deserta de sutilezas vis. 
foi assim, por um triz, que me abandonei num falso porto. 
e retornei juntando as postas. e me refiz de alma e corpo.

Mario Liz


quinta-feira, 26 de outubro de 2017


Tela "O Grito" de Edvard Munch

Quem é que não se lembra
Daquele grito que parecia trovão?
– É que ontem
Soltei meu grito de revolta.
Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra,
Atravessou os mares e os oceanos,
Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,
Não respeitou fronteiras
E fez vibrar meu peito

Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens,
Confraternizou todos os Homens
E transformou a Vida

Ah! O meu grito de revolta que percorreu o Mundo,
Que não transpôs o Mundo, 
O Mundo que sou eu!

Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe,
Muito longe,
Na minha garganta!

Na garganta de todos os Homens

Amilcar Cabral

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Olá, mãe


Crédito da imagem: Pinterest

Há ainda, no teu quarto, 
aquela figura de Fátima que sempre te acompanhou. 
Estás lá. Lá, dizemos-te olá, mãe.

Há ainda, na sala, 
junto à porta que dá para o alpendre, aquele cadeirão 
no qual te sentavas para teres luz para as costuras. 
Estás lá. Lá, dizemos-te olá, mãe.

Há ainda, na cozinha, 
cada objecto no lugar onde os deixaste. 
Estás lá. Lá, dizemos-te olá, mãe.

Há ainda, lá fora, 
os vasos dispostos como os dispuseste. 
Alguns já começaram a partir, mas vamos tentar deixá-los lá 
pelo tempo que forem resistindo. 
Porque estás lá. E lá queremos dizer-te olá, mãe.

Há ainda, em nós, muito de ti. 
Mãe: lembramo-nos de ti, nunca te esquecemos – 
muitas vezes, quando fechamos os olhos, 
é para te dizermos olá.

Olá, mãe. Nos meus olhos não há água. 
Sou ainda o menino que deixaste na escola pela primeira vez 
e a quem disseste para não chorar. Não choro, 
mas a escola da vida, ao contrário da dos livros, precisava de ti. 
Contigo, aprendi o amor eterno: 
o que só existe quando alguém não sai de nós. 
Saíste do mundo dos outros 
mas não saíste do mundo dos que te amam. 
Não saíste dele, não saíste de mim. 
[De mão no peito] Não saíste daqui – Olá, mãe!

Fazes anos hoje, porque ainda nos vives. 
E penso em tudo quanto me lembra de ti,
como se tudo fosse um teu “Olá, filho”.

Sérgio Lizardo


terça-feira, 24 de outubro de 2017

Os afetos


Pintura: "The Good People - Secrets", by Michelle Bird

Porque o quadrado da hipotenusa
é igual a já não sei quê dos catetos
a traça do passado é tão confusa
mas tão límpida a lembrança dos afetos
são fartos e temíveis
são as cordas sensíveis
quietos irrequietos
p'ra sempre
politicamente incorretos
os afetos, os afetos.

Sérgio Godinho


sábado, 21 de outubro de 2017


fotografia de Roseana Murray

Esse jardim
tem cheiro de algas.
Um pedaço do mar
se aloja entre as flores
e sua música
vagueia mais que perfume.
Esse jardim está aqui
e além,
se desdobra até onde
o olhar não alcança,
até o moinho
de fabricar beleza.

Roseana Murray





quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Soneto da Saudade




Acrilic on Canvas "Bisou", by Beata Chrzanowska

Quando sentires a saudade retroar
Fecha os teus olhos e verás o meu sorriso
E ternamente te direi a sussurrar:
O nosso amor a cada instante está mais vivo

Quem sabe ainda vibrará em teus ouvidos
Uma voz macia a recitar muitos poemas
E a te expressar que este amor em nós ungindo
Suportará toda distância sem problemas

Quiçá, teus lábios sentirão um beijo leve
Como uma pluma a flutuar por sobre a neve
Como uma gota de orvalho indo ao chão.
Lembrar-te-ás toda ternura que expressamos,
Sempre que juntos, a emoção que partilhamos
Nem a distância apaga a chama da paixão.

Guimarães Rosa

sexta-feira, 13 de outubro de 2017


Imagem Google

De que serviu ir correr mundo,
arrastar, de cidade em cidade, um amor
que pesava mais do que mil malas; mostrar
a mil homens o teu nome escrito em mil
alfabetos e uma estampa do teu rosto
que eu julgava feliz? De que me serviu

recusar esses mil homens, e os outros mil
que fizeram de tudo para eu parar, mil
vezes me penteando as pregas do vestido
cansado de viagens, ou dizendo o seu nome
tão bonito em mil línguas que eu nunca
entenderia? Porque era apenas atrás de ti

que eu corria o mundo, era com a tua voz
nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo
do amor de cidade em cidade, o teu nome
nos meus lábios de cidade em cidade, o teu
rosto nos meus olhos durante toda a viagem,

mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.

Maria do Rosário Pedreira 
in Nenhum Nome Depois


quinta-feira, 27 de julho de 2017

Classificados Poéticos




Procura-se algum lugar no planeta
onde a vida seja sempre uma festa
onde o homem não mate
nem bicho nem homem
e deixe em paz
as árvores da floresta.

Procura-se algum lugar no planeta
onde a vida seja sempre uma dança
e mesmo as pessoas mais graves
tenham no rosto um olhar de criança.

**************************************************


Troco um fusca branco
por um cavalo cor de vento
um cavalo mais veloz que o pensamento
Quero que ele me leve pra bem longe
e que galope ao deus-dará
que já me cansei deste engarrafamento...

*****************************************************


Perdi maleta cheia de nuvens
e de flores,
maleta onde eu carregava
todos os meus amores embrulhados
em neblina.

Perdi essa maleta em alguma esquina
e algum sonho
e desde então eu ando tristonho
sem saber onde pôr as mãos.
Se andando pelas ruas
você encontrar a tal maleta,
por favor, me avise em pensamento
que eu largo tudo e vou correndo...

*********************************************************


Vende-se uma casa encantada
no topo da mais alta montanha.
Tem dois amplos salões
onde você poderá oferecer banquetes
para os duendes e anões
que moram na floresta ao lado.

Tem jardineiras nas janelas,
onde convém plantar margaridas.
Tem quartos de todas as cores
que aumentam ou diminuem
de acordo com o seu tamanho
e na garagem há vagas
para todos os seus sonhos.

*********************************************************


Colecionador de cheiros troca
um cheiro de cidade
por um cheiro de neblina
um cheiro de gasolina
por um cheiro de chuva fina
um cheiro de cimento
por um cheiro de orvalho no vento

**************************************************************


Quero asas de borboleta azul
para que eu encontre
o caminho do vento
o caminho da noite
a janela do tempo
o caminho de mim

*************************************************************


Procura-se um equilibrista
que saiba caminhar na linha
que divide a noite do dia
que saiba carregar nas mãos
um fino pote cheio de fantasia
que saiba escalar nuvens arredias
que saiba construir ilhas de poesia
na vida simples de todo o dia. 

**********************************************************


Compro um barco cheio de vento
com velas cor do firmamento
e uma bússola que aponte sempre
para as luas de saturno.

Compro um barco que conheça
caminhos secretos de mares desconhecidos.
Um barco feito de vento
onde caibam todos os meus amigos.

Compro um barco que saiba decifrar
os segredos escondidos
no coração das noites sem luar.


Roseana Murray


quarta-feira, 26 de julho de 2017

N'algum lugar em que nunca estive


Imagem: Facepage Colors For You

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

Edward Estlin Cummings
Tradução: Augusto de Campos



sábado, 22 de julho de 2017

Auto-retrato


Retrato de Roseana Murray - Arte de Caó Cruz Alves

falo pouco
entre uma palavra e outra
um rio pára e descansa
suas águas contínuas

meu coração habita
a terceira margem
onde cavalos e pássaros
fabricam os sonhos
que sonharei

debaixo das unhas
estão guardados
os dias que virão
novelo de vida
uma ponta amarrada no pulso
a outra ponta perdida

Roseana Murray


sexta-feira, 21 de julho de 2017

Noites com sol


Imagem Google

Ouvi dizer que são milagres
Noites com sol
Mas hoje eu sei não são miragens
Noites com sol
Posso entender o que diz a rosa
Ao rouxinol
Peço um amor que me conceda
Noites com sol

Onde só tem o breu
Vem me trazer o sol
Vem me trazer amor
Pode abrir a janela
Noites com sol e neblina
Deixa rolar nas retinas
Deixa entrar o sol

Livre será se não te prendem
Constelações
Então verás que não se vendem
Ilusões
Vem que eu estou tão só
Vamos fazer amor
Vem me trazer o sol

Vem me livrar do abandono
Meu coração não tem dono
Vem me aquecer nesse outono
Deixa o sol entrar

Pode abrir a janela
Noites com sol são mais belas
Certas canções são eternas
Deixa o sol entrar

Flávio Venturini


terça-feira, 11 de julho de 2017


Imagem daqui

...
E se é para estar vivo que haja perigo, e
se é para falar que seja capaz de
chocar. Porque a vida é obscena, porque
amar é tentar o inaceitável, porque a
euforia é o que fica depois do razoável. E
abomino o impecável, e atiro ao rio o 
saudável, e vou à procura do indescritível, da
demência de quem só quer
descobrir, da extravagância de quem
nunca aprendeu a não sonhar.
Se tiver de morrer que seja da queda, e
que seja eu a prova de que é possível voar.
...

Pedro Chagas Freitas


segunda-feira, 10 de julho de 2017

À Espera dos Bárbaros


:'(

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloquências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

Constantino Kaváfis
tradução de José Paulo Paes


domingo, 9 de julho de 2017


Imagem: Google

Talvez até a vida seja simples.
Os meus lábios são, por exemplo,
feitos de vento
e a minha voz é uma cortina de fumo
para me defender do frio.
Lembrei-me um dia
de cortar os dedos
para não mais escrever poesia.
(Nunca chorei tanto
em toda a minha vida!...)
Hoje tenho a convicção das dunas,
sei que os meus cabelos
escrevem 365 livros por ano
e procuro sozinha o Infinito.

Maria Azenha


quinta-feira, 6 de julho de 2017

A Fala de Deus


Pintura de Zhou Zhongyao

Houve um tempo em que Deus falava hebraico

Passou depois a falar latim
Após um rápido estágio pelo grego.

Atualmente há quem afirme que optou pelo inglês
Embora em algumas tribos
Xamãs se comunique com os seus
em incompreensíveis dialetos.
Isto apenas prova
que Deus é poliglota
Se não por que inventaria a Torre de Babel?

Só não entendo por que alguns se apresentam
como seus tradutores e intérpretes
quando ele claramente fala pela voz dos pássaros e das flores

ou quando pela boca das bactérias
destrói ( silencioso )
nossa empáfia verbal.

Affonso Romano de Sant"Anna


terça-feira, 4 de julho de 2017


Pintura de Christina Nguyen

A vida nunca foi só inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

Maria do Rosário Pedreira


quarta-feira, 28 de junho de 2017

Devia morrer-se de outra maneira


Imagem: Google

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira




segunda-feira, 26 de junho de 2017

Entregar-te a Minha Vida por Escrito


Foto minha


Entregar-te a minha vida por escrito
e também os meus sonhos
e os desejos
as dores e as alegrias
as conquistas e as perdas
e tudo o que é de mim...e o que não é
e a mesa do jantar, as velas acesas 
a tarte de maçã e o chá de amor-perfeito
um arco-íris em quatro épocas 
…os pensamentos e o meu silêncio 

Entregar-te a minha vida por escrito
e também havias tu e havia o céu
e havias tu e havia o mar
havia um beijo, e um olhar
uma flor, e um abraço
e a esperança
e o destino

E agasalho-te de poemas 
e cicatrizo-te das feridas
…e entrego-te a minha vida…por escrito...

Maria Nóbrega


sábado, 24 de junho de 2017

Velha Chácara


Imagem: casa da minha infância visitada através de Mr. Google Maps.
(Hj sem árvores, sem riacho sem crianças)

A casa era por aqui...
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Ah quanto tempo passou!
(foram mais de cinquenta anos)
Tantos que a morte levou! 
(e a vida... nos desenganos...)

A usura faz tábua rasa 
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...

- mas o menino ainda existe.

Manuel Bandeira



sexta-feira, 23 de junho de 2017

Segredo


Desconheço a autoria da imagem

Andorinha no fio
escutou um segredo.
Foi à torre da igreja,
cochichou com o sino.

E o sino bem alto
Delém-dem
Delém-dem
Delém-dem
Delém-dem!

Toda a cidade
ficou sabendo.

Henriqueta Lisboa



quinta-feira, 22 de junho de 2017


Fotografia minha

Hoje visitei a beira do abismo
Eu e meu jeans
No fundo, sempre achamos que o tempo não iria passar
Acocorei-me sobre o limbo que cobria o chão que pisava
Abotoei uma borboleta amarela na lapela
Cobri-me daquele sol desbotado e velho
Apanhei um cogumelo solitário que insistia em crescer na pedra
Cheirei duas nuvens passageiras
Mas resolvi não olhar para o espelho do mar.
E o azul acima da minha cabeça sempre me desafiando:
Resolvi seguir pra lá.
Estou cansado de tentarem me convencer que envelheço.

Celso Mendes

terça-feira, 20 de junho de 2017


arte surreal de Elton Fernandes

Para voar é preciso
mais do que asas
e ar,
é preciso cortar 
os medos
que nos esperam
cada manhã
ao pé da cama,
no parapeito da janela.
Cortar o medo
com faca afiada
em pequenos pedaços
e então romper o espaço
que separa o chão 
do céu.

Roseana Murray


domingo, 18 de junho de 2017



É preciso avisar toda a gente
Dar notícia, informar, prevenir
Que por cada flor estrangulada
Há milhões de sementes a florir.

É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
Engrossando a verdade corrente
duma força que nada a detenha.

É preciso avisar toda a gente
Que há fogo no meio da floresta
E que os mortos apontam em frente
O caminho da esperança que resta.

É preciso avisar toda a gente
Transmintindo este morse de dores
É preciso, imperioso e urgente
Mais flores, mais flores, mais flores.


João Apolinário


quinta-feira, 23 de março de 2017

Dorme, amor


Arte de Ibuki Satsuki 

Dorme, amor!...
Uma estrela nascente 
Treme, suave, quando vem o vento leve. 
Vibrando com o frio, o portão 
Desenha os seus contornos no crepúsculo. 

 Dorme!... Esta noite serei uma pomba, 
Descerei, leve, sobre a tua cortina, 
Para sobre o peito te cruzar as asas, 
E sem ruído,depois, te abraçar.

  Illé Tuktash 
 (trad. Maria Etelvina Santos)


Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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