Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

A fome

 

Paul Hill – Legs over High Tor Matlock


Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,

aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.

Luís Miguel Nava
In "Vulcão"





O beijo

 

Cherry Bite, by ftourini - on DeviantArt


Ao me beijar
esqueceu uma palavra em minha boca
Devo guardá-la
embaixo da língua?
engoli-la como um comprimido
a seco?
mordê-la até sentir
seu gosto de fruta
estrangeira, especiaria, álcool
duvidoso?
devolvê-la
num beijo
a ele?
a outro?
É pequena e dura
mais salgada que doce
e amarga um pouco
no fim.

Ana Martins Marques






Silêncio, sempre em silêncio

 

Mulher e espelho, by Mercuro B Cotto

Silêncio, sempre em silêncio,
as mulheres refazem o penteado,
que as mãos forasteiras
da noite desmancharam.
É a hora do romper do dia.
A cor da madrugada
quase que dói por dentro da pele.
E não fora a urdidura de mágoas
antigas, elas dariam, à paisagem,
o nome de um deus solar.

Graça Pires
em "Quando as estevas entraram no poema"




quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

As coisas semelhantes

 

Arte de Maisie Broadheado


Um dia tiveste a minha idade e tantas ou mais coisas
partidas do que eu. Um coração, o fecho de um colar de pérolas,
aqueles olhos vazios como o lembrete verde no topo da estante,
demasiadas palavras armadas em metáforas. Coisas semelhantes
que mais tarde alguém tentou reparar. Tempo, amor e morte – sobretudo
os seus lugares vazios.
E uma pele capaz de os alojar.

Inês Fonseca Santos






Crisálida

 

Fotografia de usamedeniz

Dissolver o cansaço na aspirina o açúcar a angústia
a lembrança no sono o tropeço os falhanços, ligar
com cimento, construir

chorar de vez em quando às escuras para a febre descer

polir palavras com escova colocá-las com pinça
no interior, derramá-las num jarro sem vinho sobre o papel,
deixar secar, recortar, recompor, calar gritos, escrever

sonhar os poemas que não se escreve, escrever os poemas que não.
Podar as plantas nos filhos, mostrar os frutos, o caroço,
o saco do lixo, a hora de ponta, suor. Depois lavar. Levar
o peito à rua, receber os outros, perdê-los, trocá-los,
devolver este par de mãos àquele mar, afogar em esforço
a carótida torcida do tempo, parar sempre noutra esquina,
fugir à vertigem com o prazer das alturas, perder,

permanecer sentado até à dor nos ossos, cronometrar paciências,
aprender na lentidão a única saída,
rápida

e envelhecer.
Acreditar?


Manuel Cintra




Gavetas separadas

 

imagem via Pinterest

Foi-se o tempo em que tudo e nada dura,
e hoje penso no acaso sem remédio
de cada um de nós guardar
o passado em gavetas separadas.

Nuno Dempster





quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Cuidado! Não é tua esta morte

 

Arte de AM Lorek


Cuidado! Não é tua
esta morte.
Cuidado! Ela vem disfarçada
de irmã e reparte
moscas e formigas
como se fossem frutas
maduras e espigas.
Cuidado! que vem vestida
de infância
e de vida.

Alberto da Costa e Silva



E se eu fugisse?



Arte de Tran Nguyen


E se eu fugisse?

E se eu enchesse o meu peito de ave
de coragem atrevida
abrisse as asas e partisse, no tarde da noite
sem ninguém dar por mim?

E se as minhas penas lambessem os céus frios
num voo infinito, traçando o azimute da lua
E se eu rumasse ao branco silêncio das estrelas?

E se eu apontasse o meu bico de pássaro
para o vento norte
e com os olhos cheios de lágrimas
me embriagasse
de azul, de céu, de água, de sal?

E se eu fugisse?
E se eu não voltasse?

Ana Mateus





segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Antes de azedar

 

Fotografia "Direto das Ruas", Campo Grande News


não dá pra recolher
o leite derramado.
dá pra escrever um poema
meio sujo
um poema meio molhado
na ponta
do pano de prato.
não vale a pena chorar
sobre o que caiu por um
v ã o
se a vida mesmo escorre
por ambos os lados
de uma

bi
fu          rc
aç              ão 


Ana Mendes



   

Mande-me estrelas

 

Arte de Aykut Aydogdu⁣⁣⁣⁣⁣⁣⁣⁣


Não sou noite, mas tenho medo da minha própria escuridão.
Por favor, me mande estrelas.

Rosa Berg





Túrgida-mínima



Imagem via Pinterest


Imaginei que te encantaria a luminescência dos meus cabelos
Pintei-os para entregar-te os caracóis na caixinha da dançarina
A cada volta da corda, ela gira, e teu rosto é meu pensamento

Assim me possuirás bem juntinho entre as rosas e os alecrins
Do nosso jardim sagrado

Amor que resiste a silêncio, fome, gesto
É fonte de júbilo, desejo, força da pele,
Virgem é artéria temporal, o meu Amor

Não importa se moras em meu delírio
Meu coração te reconhece em todos os espasmos
Do Ar e da Água.

Lucia De Moura Chamma




sábado, 4 de novembro de 2023

O pecúlio


Fotografia de Pierre Debusschere


Estou sempre indo ao seu encontro
chego de costas pra você achar que estou indo embora
saio de frente pra você achar que estou chegando
estou sempre perdido indo ao seu encontro
é assim a minha vida e o meu calendário
eu estou sempre indo ao seu encontro
não preciso ir mais longe pra saber
que estou sempre indo ao seu encontro.

Bruna Beber





Que não escutes outra voz

 

Fotografia de Jan Bishop


Que não escutes outra voz
distinta da minha - disseste
soprando o primeiro fósforo.
Que não digas nada que me fira
foi o teu segundo desejo - e o escuro
ia-nos envolvendo pouco a pouco.
Que não acabe este sonho
- sussurraste, soprando a última vez.
E tudo desapareceu.
E de repente nos achámos
no meio da noite.
Surdos, mudos e cegos.

Alfonso Brezmes







Mulher-nuvem


Imagem via Pinterest
 

Mulher-nuvem que chova quando chore
e se pendure dos batentes das janelas
nos dias de vento forte a moderado.
Tenha a frágil espessura dos corpos
e a consistência redonda de um fantasma.
Se a virdes, não lhe digais que a busco,
pois podia pensar que estou desesperado
sem o morno de seus braços de algodão,
sem o suave peso da sua sombra.

Alfonso Brezmes






Teima

 

Arte de Kalin Hawkins

Inútil, sem razão,
o meu amor permanece
para além do tempo
e do sofrimento.

Luísa Dacosta






Por aqui andamos a morder as palavras

 

Arte de Anka Zhuravleva

Por aqui andamos a morder as palavras
dia a dia no tédio dos cafés
por aqui andaremos até quando
a fabricar tempestades particulares
a escrever poemas com as unhas à mostra
e uma faca de gelo nas espáduas
por aqui continuamos ácidos cortantes
a rugir quotidianamente até ao limite da respiração
enquanto os corações se vão enchendo de areia
lentamente
lentamente

Egito Gonçalves






quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Instantâneo

 

Desconheço a autoria da imagem


Com os dedos pintados de branco,
ela ajoelhou-se na terra,
para chorar a solidão dos homens.
Que anjo se movimenta
no discreto brilho que paira nos seus ombros?
De noite, as janelas de todas as casas
hão-de incendiar-se.
Um clarão perpassará os olhos
dos que avistam o sul
através da evocação das pombas
evadidas do inverno.
Ela continuará de joelhos,
longamente chorando a solidão dos homens.

Graça Pires





Demora

 

Imagem via Pinterest


O amor nos condena:

demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto
in " idades cidades divindades"




Usa o meu coração

 

Imagem via Pinteret


Usa o meu coração, se o teu já tens gasto,
feito a pedra de mó que a faca alisa, cava
e parece estender como massa de trigo
sobre a mesa molhada. Usa o meu coração

como o trapo que limpa a sujeira das tábuas
e enegrece de pó, e se pui, e se esgarça,
se com ele se invertem este dia adverso
e esta noite perversa. Usa o meu coração

para nos esconder, como aos olhos as pálpebras.
do cansaço do tempo, do bolor nos retratos,
e jogar para os céus, ao abrir das janelas,
qual um sonho ou um parto, os pardais e os canários.

Alberto da Costa e Silva



Acordo perfeito

 

Imagem via Pinterest


Já faz tempo que quero saber
já faz tempo que eu esqueço
de procurar a resposta
já faz tempo que de tempos
em tempos eu queria
sair voando desordenadamente
como um balão, desaparecendo
como um balão estourado
um balão que vai perdendo o gás
no começo vai ser tudo
bem desesperador
aí depois vai ser só o vento
eu e o vento
dançaremos no compasso
do mundo, nada imposto
nada certo, nada errado
nada fora do lugar
ficarei com o vento
até que cansaremos os dois
eu de ser carregada
ele de me carregar
e pousaremos a esmo
até que mil anos de decomposição
nos façam sumir de uma vez.

Marilia Valengo
in "Grito em praça vazia"




sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Lista de supermercado - Com as coisas que acabaram

 

Imagem via Pinterest



(Põe na lista o refil disso aí que acabou)
Margarina, sexo, pão
Milho, ervilha, tesão
Veneno de barata
E um maço de compaixão

Cebola, carinho, cuidado
Batata, aventura e mamão
Alguma novidade, molho de macarrão
Uma urgência de fim de tarde
Um pacote de feijão

Um dente afiado de alho
Um gosto por confusão
Cerveja, vodka, whisky
Um bom pau de amarração

Um pedaço de alegria
Fralda de montão
Filé sem melancolia
E um extrato de paixão
O detergente de mágoa
O papel que absorve dor

Uma água com aquele cheiro
De um sentimento anterior
sabão de lavar a alma,
alvejante de coração,
o chá de manter a calma,
o shampoo anti-depressão.
leite de longa vida,
balinhas de erudição,
spray de curar ferida,

Azeite, disposição
Se não for estourar o cartão
Faz um gesto de sedução
Por fim o mais importante
Procure em toda seção
Se não tiver dá um jeito
Pergunte em outro mercado
Vai catar no meio do Mato
No camelô, no interior
Mas não apareça de volta
Sem amor de perdição.

Paulo Cândido
em A canção da borboleta ausente





Romance em doze linhas

 

Imagem via Pinterest


Quanto tempo falta pra gente se ver hoje
Quanto tempo falta pra gente se ver logo
Quanto tempo falta pra gente se ver todo dia
Quanto tempo falta pra gente se ver pra sempre
Quanto tempo falta pra gente se ver dia sim dia não
Quanto tempo falta pra gente se ver às vezes
Quanto tempo falta pra gente se ver cada vez menos
Quanto tempo falta pra gente não querer se ver
Quanto tempo falta pra gente não querer se ver nunca mais
Quanto tempo falta pra gente se ver e fingir que não se viu
Quanto tempo falta pra gente se ver e não se reconhecer
Quanto tempo falta pra gente se ver e nem lembrar que um dia se conheceu.


Bruna Beber






Livra-nos

 

Arte de Donato Giancola


Livra-nos, se puderes,
das angústias sem fim, das noites de insônia,
dos sonhos possíveis que se tornam impossíveis.
Livra-nos do assédio dos fracos,
da inconsistência das coisas,
do medo sem motivo, das confissões
excessivas e do sucesso,
que tira a nossa liberdade
e é capaz de iludir os mais sagazes.

Marly de Oliveira



Os anéis fatigados


Painting Myself the Color of Water, de Carmen Lozar


Há ânsias de voltar, de amar, de não ausentar-se,
e há ânsias de morrer, combatido por duas
águas unidas que jamais hão-de istmar-se.

Há ânsias de um beijo enorme que amortalhe a Vida,
que acaba na África de uma agonia ardente,
suicida!

Há ânsias de… não ter ânsias, Senhor,
a ti aponto-te com o dedo deicida:
há ânsias de não ter tido coração.

A primavera volta, volta e partirá. E Deus,
curvado em tempo, repete-se, e passa, passa
carregando a espinha dorsal do Universo.

Quando as têmporas tocam seu lúgubre tambor,
quando me dói o sonho gravado num punhal,
há ânsias de ficar plantado neste verso!

César Vallejo






Cala-te



Imagem via Google


Cala-te, voz que duvida
e que adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido...

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido)

José Gomes Ferreira





Rimbaud de saia

 

duma vitrine de fastfashion brasileira
 

Por acaso era Copacabana
olhares cúbicos te espreitando
na filial da Max Factor
poesia de rádio
escapando pela manga
do teu paletó preto
Abissínia de cabelos
travestida em rio elétrico
um reflexo, vitrines
pés, mãos, olhos de areia
manequim de zoom à tira colo
a mala desfeita pro show.

Alex Hamburguer





quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Para atravessar contigo o deserto do mundo

 

Fotografia de Ludovic Florent


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.

Sophia de Mello Breyner Andresen
in Livro Sexto




sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Segundo soneto dos setent'anos

 

Richard Gere, WENN Rights Ltd / Alamy Stock Photo


No transfúgio dos sonhos, dia a dia,
Busquei alimentar-me de esperanças.
Em meu itinerário, ou nas andanças,
Fiz pela vida estranha romaria.
Às vezes, foram fortes as mudanças

E fui perdendo luzes de alegria.
Entanto, invento sempre a fantasia,
Mesmo ofertando a face e muitas lanças.

Recuso-me, contudo, a envelhecer.
Um grande amor chegou. Por que morrer?
Por que sentir as cousas terminadas?


Não posso ser eterno. Sou tão pouco!
Gastei a vida em sonhos: peço troco.
Ao fim da tarde, penso em madrugada.

Artur Eduardo Benevides





Quis achar no teu corpo


Monica Bellucci em fotografia de Vincent Peters, 2006

Quis achar no teu corpo uma loucura nova
alguma coisa viva
que lá não estava
e que era só minha
e que eu te emprestava.
Então, deu-me saudade
do tempo em que teu corpo
fruta à prova
já era, por si só, uma loucura nova.

Renata Pallottini







sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Água

 

Arte de Roberta Coni

Tão manso é o lago dos teus olhos
que temo avançar a mão
cortar as águas
e semear o espanto
na descoberta
da minha sede antiga.

Ana Paula Tavares





quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Assim

 

Desconheço a autoria da imagem


Assim
dobradinha como pano de vela
sem ser colcha de mar
encolhidinha como remorso
sem pudor na lira
salivando assanhos de amor

quem manda
lambuzar unguento sobrecoxas
entre os sopros que te tomo?

Sem panos e chão.


Lucia De Moura Chamma







Setembros

 

Fotografia de Aldana Belloso


o tempo
corrói a vida pelas bordas
insaciável
já devorou
mais da metade do que sou

[...ou do que fui?

e nos setembros
ele arranca pedaços
inteiros

Nydia Bonetti






Necropolítica

 

Arte de Miles Johnston


escrever um poema a um homem
antes que o levem

antes que ele se perca numa
estrada vazia                           antes
que ele desista
de sua própria vida

escrever um poema a um homem
antes que o joguem água fria
ácidos ou gás                           antes
que em praça pública
depositem sua cabeça
numa bacia

escrever um poema a um homem
escrito em caneta rosa
com ponta fina
um poema que toque
e o faça tocar
cada parte
de sua estrutura
física

um poema que reduza a estatística
e que meu amor
traduz

antes que seja tarde
antes que o deus deles
apague sua luz


Bianca Gonçalves





sexta-feira, 8 de setembro de 2023

De ramo em ramo

 

Fotografia de Albarran Cabrera


Não queiras transformar
em nostalgia
o que foi exaltação,
em lixo o que foi cristal.
A velhice,
o primeiro sinal
de doença da alma,
às vezes contamina o corpo.
Nenhum pássaro
permite à morte dominar
o azul do seu canto.
Faz como eles: dança de ramo
em ramo.

Eugénio de Andrade





Quando subias


 

Imagem via Pngtree


Quando subias
Pela manhã
O caminho dos castanheiros
O vento
Atrevido
Insinuava no teu cabelo
A vontade profana
De avivar
O cheiro a maçãs maduras
Que inundava
A casa dos teus sentidos.

A.C.





Não vai doer

 

Modelo russa Nastya Zhidkova, em foto de Dani Golovkin


Não vai doer.
É bater de frente com a morte.
Olhar a silhueta das asas de um anjo. 
Ácido na língua. Mãos apertadas nos joelhos 
à espera da solução para os vícios. 

Não dói nada. 
Sou uma fada de botas da tropa. 
É o meu delírio sempre a horas certas
 dentro de um aquário híbrido. 

Estranhar ser pessoa. 
Estranhar ter crescido. Ter de ser crescida. 
Sem pele. 
Colecionadora de vestidos que não posso vestir. 
É incrível como a torre pode cair. 
Devia, antes de saber se caio, demolir um assunto grande. 
Só para assistir à cadência. 
Como com as estrelas, mas sem desejar. 
Não vai doer. 
É só uma luz muito aguda.

Patrícia Baltazar




quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Caramujo

 

Arte de Sofia Bonati


invejei a fragata
voava rasante sobre meus olhos
tão salgados do mar de turquesas

fiquei espiando com as pestanas franzidas
desejei tanto voar, ah
fazer o traço no ar tênue e delicado
até esqueci da vertigem

espiei de banda as costas
minhas asas foram decepadas

Lucia De Moura Chamma



Foi a noite mais bela

 


Imagem via Google

(…) 

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos noturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram 
(…)

Ary dos Santos




segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Extremos


Arte Maria Fett


Vive-se nas plantas dos pés,na espiga do corpo,
nos braços do vento,
no calor das espáduas,
na beira da memória,
no eito do esquecimento,
nas asas negras das pálpebras,
no dia sonolento ou na noite árdua,

imerge-se no tempo
com assídua violência,
acossados pelos músculos da água
ou por um sôfrego fogo,

vive-se em várzeas
de claridade e treva,
deita-se a cabeça
num leve sono vegetal.

Vive-se nos abismos do puro acaso,
entre a silenciosa sombra da casa
e a cavalgada sonora da voz.

Sandro Fortes





Existencial

 

Arte Maria Fett


Tenho lembranças
De um tempo
Que não possuo

Tenho lembranças
De um tempo
Que não situo

Ah, o que não explico
Mas atento
Só por ser-me

Ah, o que não classifico
Mas sustento
Só por caber-me

Cris de Souza



quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Em cada gota o teu desenho

 

Arte de @ Natalia Drepina

Aqui de perto vejo o rio para além do mundo, para além dos prédios. E esse rio surge-me tão maior, maior do que o mar.

Para além desta janela tudo é rio sem margens nem curvas sinuosas

[apenas as tuas por trás da janela que os meus olhos tudo recortam]

A cegueira do copo liberta-me da prisão do espelho. E no copo está a parte do rio que quero só para mim.

Em cada gota se conta o tempo, como ampulheta líquida

[em cada gota o teu desenho margem do meu rio]

Aqui de perto, mesmo aqui tão perto, sem te poder tocar, sou ilha e rio à procura do teu mar.

Para além desta janela não há nada senão a vontade de ti

[chamo-te. sonho-te na corrente do sonho]


Paulo Nunes



Não é preciso nomear

 

Arte de @ Laura Makabresku

Não é preciso nomear
Este sentimento que te tenho
Basta que eu te fale
Da vida que me habita
Se ainda é véspera da tua chegada

Ah, os ensaios dos meus braços
Que me mergulham mansamente
Abrigando-se na lembrança
Da doçura dos teus abraços
Ah, minhas águas de saudades
Navegáveis apenas ao curso
Da correnteza do teu corpo

Como descrever a alegria
O rumor das minhas mãos
Líquidas de desejos
Derramando carícias nuas
Quando és ainda memória da saudade?

(...)

Fernanda Guimarães




Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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