Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

domingo, 20 de março de 2022

Palavra

 


Lendo o dicionário
encontrei uma palavra nova:
com gosto, com sarcasmo pronuncio-a;
apalpo-a, palavreio-a, amanto-a, decalco-a, pulso-a,
digo-a, tranco-a, lambo-a,
a toco com a ponta dos dedos,
tiro-lhe o peso, molho-a, amorno-a entre as mãos, acaricio-a, conto-lhe coisas, cerco-a, encurralo-a,
enfio um alfinete nela, encho-a de espuma,
depois, como a uma puta,
a expulso de casa.

Cristina Peri Rossi

 

 

sábado, 19 de março de 2022

Prece antes do baile

 

Nossa Senhora, me conceda essa graça...
(A vela ardente na madrugada
a guardar o segredo,
a pecaminosa prece).

... que seus braços envolvam
minha delgada cintura!

Por favor, mãe celeste,
que ele me peça uma dança
que eu sinta uma única vez
nossas mãos se tocarem

e talvez nos volteios da valsa
aperte-me em seu dorso
másculo
saindo pela boca
meu coração espartilhado.

Misericórdia, ó mãe,
já não posso dormir
nem comer nem rezar
sem querer esse moço
sem lembrar seu rosto
sem sonhar em sentir
sua barba bem-feita.

Mãe do perpétuo socorro,
que nossas faces se encostem
por breve elétrico instante, amém!

Lia d'Assis

 

 

 

 

sexta-feira, 18 de março de 2022

Cicatriz


" Down to Earth", arte de Michael Cheval

Passo a mão no joelho
ainda encontro
em alto-relevo
o voo do pássaro
que seguia com os olhos
enquanto eu,
menina,
viajava de bicicleta.

Maria Andrade

 

 


quinta-feira, 17 de março de 2022

A maior lista do mundo

 
"Sleep",  by Yulduskhon


se você me visse dormindo, me amaria
se me visse naquele dia em 1997, me amaria
se me visse dobrando um lençol de elástico, me amaria
se me visse descascando uma laranja, me amaria
se me visse folheando o jornal, me amaria
se me visse aos seus pés, me amaria
se me visse entre seus joelhos, me amaria
se me visse chorando, me amaria
se você me visse, me

Luana Claro
 
 



 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Vento no litoral

 

Fotografia de Dalva Nascimento
 

De tarde quero descansar
Chegar até a praia e ver
Se o vento ainda está forte
E vai ser bom subir nas pedras

Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando
Tudo embora...

Agora está tão longe
ver a linha do horizonte me distrai
Dos nossos planos é que tenho mais saudade
Quando olhávamos juntos
Na mesma direção
Aonde está você agora
Alem de aqui dentro de mim...

Agimos certo sem querer
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil sem você
Porque você está comigo
O tempo todo
E quando vejo o mar
Existe algo que diz
Que a vida continua
E se entregar é uma bobagem...

Já que você não está aqui
O que posso fazer
É cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos,
Lembra que o plano
Era ficarmos bem...

Ei!
Olha só o que eu achei
Hummm
Cavalos-marinhos...

Sei que faço isso
Pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando
Tudo embora

Renato Russo

 


 



sexta-feira, 11 de março de 2022

A tempestade

 

Arte de Margarita Georgiadis - The Unraveling, 2009

 {excerto}

Se pudesse encarnar e tirar agora do meu seio
aquilo que nele é mais profundo, se pudesse cingir
com palavras estes meus pensamentos, e assim exprimir
alma, coração, e espírito, paixões e todos os
sentimentos,

ah, tudo o que poderia desejar, e desejo,
sofro, conheço e sinto, sem que morra, numa só palavra
– e que essa palavra fosse “Relâmpago!” – eu a diria;
mas não, vivo e morro voltando para o silêncio apenas,
com sufocadas vozes que guardo como uma espada;

George Gordon Byron

 

 

quinta-feira, 10 de março de 2022

Queria ter estado junto a ti hoje

 

Escultura em cerâmica de Lucinda Brown

 Queria ter estado junto a ti hoje.
Os meus lábios andaram em fogo todo o dia
e fugiam para o teu nome
quando lhes soprava a aragem da poesia.
Já não me reconheço.
Não percebo quase nada do que digo
nem sei em que língua me disperso.
As palavras saem-me da boca, todas
de mão dada
contigo
mas engulo o teu nome
sempre que mergulho num verso.

Mário Lopes

 

 


quarta-feira, 9 de março de 2022

Último sonho


 

Foto de Kavring

 

A minha avó Isabel
ouvia em sonhos rebanhos de ovelhas
passando junto à janela.

Todas as noites, em plena cidade,
as ovelhas da sua infância visitavam-na.
Jurava que ouvia os suaves balidos,
o delicado tilintar dos chocalhos
misturando-se ao rumor de patas pisando o asfalto.

A minha avó Isabel
recebia a visita dos sons da sua meninice aos noventa anos.
Para ela, a cidade povoava-se de ovelhas invisíveis
pastando entre as recordações da sua infância na aldeia
sem eletricidade, sem água corrente, sem automóveis.

Quando um som, um cheiro, uma imagem ou uma voz
encontram o seu caminho de regresso até nós,
não há nada mais verdadeiro do que essa presença
vívida, intensa, verdadeira.

Talvez no final da nossa vida
nos permitam recordar o essencial,
o mais belo que tenhamos vivido.

Se é verdade que a nossa memória
nos concede um último desejo antes dessa viagem
em forma de ilusão com aspecto de realidade,
de alucinação esplêndida como um céu de verão,
com que som adormecerá cada um de nós?

María Paz Moreno



terça-feira, 8 de março de 2022

Tenho um decote pousado no vestido

 

By Robin Isely

 Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas,
mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o
verão.
E, se de noite as repito em surdina, no silêncio
do quarto, antes de adormecer, é como se de repente
as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses
em busca desses antigos recados levados pelo tempo:

Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo
e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas.
Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde
e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos.

Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão
do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos
do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela
música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever
as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo;
e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes.

Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta
meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias
afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo,
por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo
menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha
boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes.

Maria do Rosário Pedreira

 

 

segunda-feira, 7 de março de 2022

Até ao esquecimento

 

By Paolo Ventura

Cansados de inventar palavras
de dar nome ao silêncio
para afugentar tristezas
Cansados de olhar para o céu
rogando que chova
Que a água ou o vento
tragam um gesto que nos devolva a vida
Cansados de pedir aos mortos
que encham as nossas horas
que inundem com as suas vozes o nosso leito obscuro
Cansados por fim de acreditar
em labirintos
Optamos por deixar de interrogar as esquinas
por ignorar promessas
Optamos por fim por essa eternidade
que é o esquecimento.

Martha Carolina Dávila

 

 

domingo, 6 de março de 2022

Filosofal

 

Arte: Rob Woodcox

Fosse
A pedra
Um poema
- Poema
de jade! -
Morrerias
Sem saber
O que é
Preciosidade

Cris de Souza

 



sábado, 5 de março de 2022

Indecifráveis sinais

 

Ziqian Liu photography

Manchado de sal, o silêncio escorre-me na cara.
Os meus olhos tropeçam em raízes antigas
e movem-se-me, na memória, indecifráveis sinais:
marcas de nascimento, lugares e pessoas, gestos
e palavras. É madrugada. Os pássaros evitam
os voos rasantes, porque as últimas sombras
da noite lhes ferem as pupilas.

Graça Pires




 

 

sexta-feira, 4 de março de 2022

Dez réis de esperança

 

Fotografia de Max Dupain

 

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingênuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aquarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras seletas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

Antonio Gedeão

 

 

quinta-feira, 3 de março de 2022

Uma saudade que não cabe nas mãos

 

Arte de Christian Scholoe

 uma saudade
que não cabe nas mãos
cria asas

e voa

se solta num canto
de ave noturna
parda

antes ainda
do sol se pôr inteiro

Nydia Bonetti

 

 

quarta-feira, 2 de março de 2022

Encruzilhada

 

Imagem via Google

Quero te dizer tanta coisa,
mas não tenho tempo agora.
Quero te dizer tanta coisa,
mas temo, no tempo, ser inábil.
Quero te dizer tanta coisa,
mas tudo, tudo antes que o mundo acabe.

Descobri tanto neste tempo insano,
tanta insanidade neste cotidiano,
que queria, mesmo, ter tempo de te contar.
Na encruzilhada da vida versus morte,
melhor sorte, mesmo, é sonhar.
Conta pra mim, tu podes me esperar
💧
para sempre?

Eupaitio Caska

 

 

terça-feira, 1 de março de 2022

A balada da água do mar

 

Pintura do artista australiano Colley Whisson

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.

- Que vendes, ó jovem turva,
com os seios ao ar?

- Vendo, senhor, a água
dos mares.

- Que levas, ó negro jovem,
mesclado com teu sangue?

- Levo, senhor, a água
dos mares.

- Essas lágrimas salobres
de onde vêm, mãe?

- Choro, senhor, a água
dos mares.

- Coração, e esta amargura
séria, onde nasce?

- Amarga muito a água
dos mares!

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.

Federico Garcia Lorca

 

 
 

Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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