Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

sábado, 30 de maio de 2020

Esquece o que escrevi


Arte de Adam Martinakis

Esquece o que eu escrevi, deita-te aqui perto
e ouve só as minhas palavras sem sentido,
o balbuciar que eu solto antes da voz,
tudo o que há tanto tempo trago preso na garganta.

Nem o ritmo da cantilena aprendida na infância,
nem a música da poesia:

ouve apenas o balbuciar, o sopro antes da voz,
quase um estertor, mas a dizer agora
que estamos vivos.

Luís Filipe Castro Mendes
in Lendas da Índia



Quem me quiser há de saber as conchas


 Arte de  Ana Luisa Kaminski

Quem me quiser há de saber as conchas
a cantiga dos búzios e do mar.
Quem me quiser há de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
a saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há de saber os beijos e as uvas
há de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.

Rosa Lobato de Faria



 

Não digas nada


Arte de Hannie Sarris

Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Fernando Pessoa
in "Cancioneiro"



 

Sotto voce


Fotografia de Helder Reis

É possível que eu esqueça a liquidez da Lua
o sono dessa rua às três da madrugada
a longa caminhada orquestrada pela chuva
a sombra de uma luva em cima de uma vaga

É possível que eu esqueça o dia em que nasceste
Em que depois da luva apareceram as mãos
É possível que eu esqueça    Ou me seja indiferente

É possível que sim   É preciso que não

David Mourão-Ferreira
in Do Tempo ao Coração




Uma rosa



Arte digital de  Aykut Ayogdu

Uma rosa que sangra
entre as pernas
no côncavo do corpo adormecida

Uma rosa no ventre
entreaberta
em si própria rasgada, enlouquecida

Uma rosa de febre
respirada
tecida nos sucos do desdém

Orgástica - voraz
e decepada
pétala a pétala lambida e desenhada.

Maria Teresa Horta
in Flor Sangrenta (Texto com supressões)




quinta-feira, 28 de maio de 2020

Bastava-nos amar


Arte de Giampaolo Ghisetti 

Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?

O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.

E bastava. Bastava respirar
a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.

Joaquim Pessoa
in Português Suave





Superação


Photo from StreamMix

Fechei-me dentro dos muros
onde o meu corpo não cabia
contente de ser prisioneira
do cárcere que eu transcendia.

E fui no vento que tudo
tudo o que havia varria,
contente de ser mais veloz
que o vento que me impelia.

Fiquei suspensa dos ramos
que os meus cabelos prendiam
contente de ser o destino
da árvore em que me fundia.

E dei-me como leito às águas
dos sonhos que me transcorriam
contente de ser o curso
da água em que me esvaía.

Natália Correia
in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias





O silêncio


 
Pintura (detalhe) de Ana Luisa Kaminski

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade
in Obscuro Domínio



 

A exaltação da pele



Pintura a óleo de Victor Nizovtserv 

Hoje quero a violência da dádiva interdita.
sem lírios e sem lagos
e sem o gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias

Natália Correia
in O Sol Nas Noites E O Luar Nos Dias





Decifra-me



Mural convertido em tela: Half-submerged dog, por Goya  

Que os teus dedos não fiquem
sem rumo
à superfície da sede
Que a tua boca não seque no sal
de um mar inútil
de memórias
Pedras e lágrimas

Procura-me
na terra mais fértil
ou na aridez do caminho

Lê-me
no silêncio dos dias sem idade
sem destino

Sou eu o fogo do teu sol

Edgardo  Xavier
in Corpo de Abrigo





Anjos caídos

 
 A ninfa Galateia nos braços do pastor Aci -  Auguste Ottin, 1863. Fontana dei Medici, Jardim de Luxemburgo, Paris.

Neste palco de sol,
de repente:
os teus lábios:
anjos caídos mas abençoando

Cada curva e tremura
dentro do nervo exato
da memória

Por esses lábios
eu faria tudo:

rasgava-me de sangue
e inocência,
partia com as mãos vitrais
e estrelas,
desintegrava o sol

Já não anjos caídos
os teus lábios,
mas deuses transportados
pelos meus

Ana Luísa Amaral
in Imagias



 

Felicidade

 
Imagem da Web

Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta.

Sophia de Mello Breyner Andresen
in Obra Poética




Não adormeças





Óleo s/ tela: Night windows, por © Edward Hopper

Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas úmidas e chãs*
com que em casa se cozinham perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.

Maria do Rosário Pedreira 
in A Casa E O Cheiro Dos Livros




*chã. ˈsub. feminino. 
1. terreno plano. 
2. planície; planura; chapada; chada. 
3. planalto.




Nada podia ser mais perfeito

  

Arte by Irina Vitalievna Karkabi

Nas tuas mãos começava
O mundo
E nada
Nem o dia
Podia ser mais perfeito...

Ana Paula Tavares
in Manual Para Amantes Desesperados




Tento empurrar-te de cima do poema



 
'The Longing' by Jack Vettriano

Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.

Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir...
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?

E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?

Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjetivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.

Ana Luísa Amaral
 in Coisas de Partir






quarta-feira, 27 de maio de 2020

Segredo

  
Arte:___Kassandra___ 

Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele

Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas

Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega

David Mourão-Ferreira
in Música de Cama



 

Sem depois

 
Arte by Tereza Ferraz
 
Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.

Mia Couto,
in Idades Cidades Divindades
 
 
 
 

Gostava de morar na tua pele


Arte de Carrie Vielle 

Gostava de morar na tua pele
desintegrar-me em ti e reintegrar-me
não este exílio escrito no papel
por não poder ser carne em tua carne.

Gostava de fazer o que tu queres
ser alma em tua alma em um só corpo
não o perto e o distante entre dois seres
não este haver sempre um e sempre o outro.

Um corpo noutro corpo e ao fim nenhum
tu és eu e eu sou tu e ambos ninguém
seremos sempre dois sendo só um.

Por isso esta ferida que faz bem
este prazer que dói como outro algum
e este estar-se tão dentro e sempre aquém.

Manuel Alegre 
in Sete Sonetos e Um Quarto



 

Os nomes inúteis


Pintura surrealista de Wen Shyan Hun

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão de pedir-to quando chegar a primavera.

Maria do Rosário Pedreira
 in Nenhum Nome Depois






Não o sonho


Fotografia © Angélina Nové 

Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tateando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.

Manuel António Pina
in Atropelamento e Fuga



 

Um poema


 "Eyes", fotografia de Helmut Newton 

de amor se faz amor
de nada mais resulta amor
que amor se faz de amor
de nada mais.
resulta amor de amor
que amor se faz de nada.
mais resulta que amor de amor
se faz amor de nada
mais.

E. M. de Melo e Castro, 
in Antologia Efémera



 

O lugar das memorias


Fotografia de  Carmen Frances

Guardava alguns silêncios e também as coisas
que não dissera por acaso. Guardava agora também
esses acasos, brancos recados entre as palavras
que lhe sobravam nas gavetas. E ainda assim guardaria
para sempre essas palavras, ou a imagem de lábios a
dizê-las ? um rosto ainda sem ser triste lembrando o verão.

Teria aguardado esse verão, o cheiro quente dos morangos
à beira os dedos. E tê-lo-ia sobretudo guardado,
como guardava agora, sem nunca o ter ouvido, o som
das espigas, na planície, à passagem do vento.

Mas agora só podia aguardar a passagem do tempo
sem palavras; ou um vento de feição, um acaso
que tudo justificasse. E no silêncio em que se ia guardando
buscava apenas um lugar mais sereno para as memórias.

Maria do Rosário Pedreira
in A Casa e o Cheiro dos Livros




Trono de luz e sombra


Fotografia de Helmut Newton
 
É nesse ponto
de tuas coxas
que o meu pescoço
implora a forca

Mas dás-lhe o trono
da luz da sombra
num sorvedouro
de rosas roxas

Agreste gosto
de úmida polpa
o que dissolvo
dentro da boca

Eis num renovo
mágica força
Rei me coroo
em tuas coxas

David Mourão-Ferreira
"XXII" in O Corpo Iluminado




Balada de fevereiro


Imagem da Web

Chove nas ruas como nas veias
cidade cheia de mágoas
e não há barcos ideias
que nos levem por sobre as águas
que tu vento despenteias.

Há só a chuva nos vidros
e este viver para dentro
há só minutos perdidos
e as caravelas do pensamento
naufragadas nos sentidos.

Manuel Alegre
in Canto da Nossa Tristeza




Praia do norte




 Pinturas foto-realista de Mark Heine

enrolar algodão
em laços de neblina
na praia do norte.

ao leme
das tuas mãos
o mar amansa
os ventos.

há um navio
sossegado nos
teus olhos.

suaves clarões
que silenciam
o estrondo
dos relâmpagos.

nos teus lábios
leio
a oratória do oceano.

acolhe-me assim
sem nome
nem história

em ti.
onde a foz
principia.

Alberto Serra
 in "Morrer de Vagar"





terça-feira, 26 de maio de 2020

Limbo


Imagem da Web

É o pranto
Que ninguém chora
Que eu agora
Canto.

E aquele amor constante,
Desenganado
Que nunca teve amante
Nem amado.

E o gesto cordial que se não fez,
Nem faz
E fica por detrás
Da timidez.

E o imortal poema
Por acontecer,
Irmão do vento, seu rival sem asas:
Lume a fugir das brasas
Antes de a lenha arder.

Miguel Torga 
in Orpheu Rebelde




De olhos fechados



 "Closed Eyes", by Camelia

Quantas horas te procurei
Neste escuro, nestas noites lunares.
Quantas vezes fechei os olhos
Para te poder ver
Na serenidade dos rios que enlouquecem.
Esquece-te de tudo,
Guarda apenas a certeza
Que o sol brilha
E que os pequenos pássaros de fogo estremecem
Quando os meus olhos se fecham
Para te lembrar.

Paulo Eduardo Campos
in Na Serenidade Dos Rios Que Enlouquecem




O lago


 
Fotografia de Jonas Lindstroem

Tão manso é o lago dos teus olhos
que temo avançar a mão
cortar as águas
e semear o espanto
na descoberta
da minha sede antiga.

Ana Paula Tavares




Devagar no centro do fogo

 
Arte de Schepniy Mykola

entra devagar no centro do fogo

guarda para dias mais trêmulos e inseguros
as perguntas os medos a dor
que sobra sempre do desejo

entra como quem morre no centro do fogo

e bebe a cinza
que desenha os contornos da cama
onde os joelhos se despem do frio
que os prende à terra

entra como quem arde no centro do fogo

e deita na água do meu corpo
as sementes acesas no tempo
que por única herança
terás de mim
entra devagar no centro do fogo

e
lavra-me

Alice Vieira
in Dois Corpos Tombando na Água




Quis um dia que um poeta me amasse


 Imagem via Pinterest

Quis um dia que um poeta me amasse.

Agora doem-me os poemas no corpo,
algo de mim que nele se reconhece até
partir a imagem de tudo quanto fui.

Agora queria que me amasse tanto que deixasse
de amar-me e suas palavras fossem neve
que o sol de Junho fundisse no meu peito,
ali onde seu hálito teima em acalmar
esta tristeza antiga que sempre me acompanha.

Chantal Maillard



Durante o sono


Imagem via Pinterest
 
Durante o sono retiraram-me uma costela
Ficou-me no peito um vazio que não consigo preencher
Custa-me a respirar
Eu quero de volta a minha costela
quero de volta todas as costelas
Quero de volta o paraíso
quero de volta o silêncio rumorejante
quero de volta as poluições noturnas
e diurnas
Quero uma mulher
feita de chuva
e vento
e fogo
e neve
e luz
e breu
e não de argila
como eu.

Jorge de Sousa Braga
in O Novíssimo Testamento e outros poemas



 

Os amantes

 
Desconheço a autoria da imagem

Os amantes, em geral,
passam noites inteiras
inquietos e ansiosos
- também eu.

Os amantes, em geral,
choram sobre as cartas,
dão telefonemas aflitos
- como eu.

Os amantes, em geral,
passam horas figurando
o corpo amado,
curvas, gestos, preferências
- como eu.

Os amantes em geral,
são patetas, maus estetas,
fazem versos ruins
e se chamam poetas
- como eu.

Affonso Romano de Santana





Ouve, tu que não existes em nenhum céu


 
Arte de Jean-Noël Lavesvre 

Ouve, tu que não existes em nenhum céu:

Estou farto de escavar nos olhos
abismos de ternura
onde cabem todos menos eu.

Estou farto de palavras de perdão
que me ferem a boca
dum frio de lágrimas quentes de punhal.

Estou farto desta dor inútil
de chorar por mim nos outros.

- Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever
os versos que me fazem doer.

José Gomes Ferreira




Um dia virá

 
Imagem via Pinterest

Um dia virá
em que a minha porta
permanecerá fechada
em que não atenderei o telefone
em que não perguntarei
se querem comer alguma coisa
em que não recomendarei
que levem os casacos
porque a noite se adivinha fresca.

Só nos meus versos poderão encontrar
a minha promessa de amor eterno.

Não chorem; eu não morri
apenas me embriaguei
de luz e de silêncio.

Rosa Lobato de Faria




Homem

 
Arte de Fabio Usvardi 

Inútil definir este animal aflito,
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.

António Gedeão





segunda-feira, 25 de maio de 2020

Não posso adiar o amor para outro século


Arte de Gustav Klimt

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa
in Viagem Através de uma Nebulosa

Pacto de incendio



Arte de  Irina Karkabi

Segura o meu corpo ferido
não me deixes cair

Sempre soube
quando fizemos
um pacto de incêndio
que só Deus
tem umas mãos tão grandes
como as tuas

É outono outra vez
Promete
que não me deixas cair
?

Ana Mateus




As gavetas


Imagem da Web

Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objetos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.

Pedro Mexia




A noite

 
  Arte de John Jude Palencar

Não consigo dormir. 
Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. 
Se pudesse, diria a ela que fosse embora; 
mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.

Eduardo Galeano
tradução: Eric Nepomuceno





Agora que não nos vemos


  Arte de Edward Hopper

Agora que não nos vemos
e as nossas vidas correm pelos dias
cada vez mais longínquas,
sinto, às vezes, uma vontade enorme
de te ver uma tarde, tomar café
contigo, saber como vais.

Agora que não nos vemos
e nos perdemos aos dois,
não penses que esqueci as tuas coisas.
Guardo boas lembranças, e poemas
que te escrevi (lembras-te?); guardo
cartas e fotografias.
E um lugar
na minha alma, onde, se quiseres,
sempre, sempre podes estar.

Abel Feu
in Poesia Espanhola Anos 90, trad. Joaquim Manuel Magalhães



 

Não digas nada


Fotografia de Jamie Nelson

Não digas nada – a tua boca já me pertenceu
e agora tenho ciúmes das palavras. O que
disseres será um beijo pousado nos lábios de
outra mulher, dor e mais dor, traição maior
para quem acreditou que o teu amor era para
a morte. Não fales – tenho também ciúmes
da tua voz; ouvir-te é ficar só uma vez mais.

Maria do Rosário Pedreira






Talvez o mais certo



Fotografia de Helder Reis 

O mais certo para ser feliz
é não interrogar a ausência,
deixar que seja só distância
o que separa,
o meu do teu olhar,
fazer de um falso silêncio
a luz,
que a noite traz
por destino suspensa
quando está luar.
O mais certo para ser feliz,
é não ter o teu corpo para abraçar,
deixar o espaço vazio
entre as nossas bocas
para que a alma
possa gritar.
É não ouvir a tua voz dizer,
Amor,
hoje vamos ver o mar.

Jorge Lopes


Nunca são as coisas mais simples


 Desconheço a autoria da imagem

Saber o que és, dizer o teu corpo,
ouvir-te num breve instante,
dizer o que é amor sem o dizer,
tirar de mim um poema que te cante;
e ver passar-te por entre os dedos
o fio de luz que prende os teus olhos,
e vê-lo enrolar-se em segredos
quando a tua voz o apaga e acende;
tocar-te os lábios num fim de verso,
ver-te hesitar entre sorriso e mágoa,
perguntar se o teu rosto tem reverso,
e ter nele uma transparência de água:
é o que vejo em ti no cair de véu
em que me dás a terra que vale o céu.

Nuno Júdice





Posso beber o amor pelo copo dos teus lábios?

 
 @ Katja Ivanchenko
 
Posso beber o amor pelo copo dos teus lábios?
O disco chega ao fim; um ruído de rua entra pela janela;
não sei se ainda é dia,
ou se a noite começa.
Mas o mundo não interfere no equilíbrio frágil
das nossas vidas. Este copo não se esvazia; e
os teus olhos levam-me à fronteira
do sonho, para que a passe, e entre
contigo num país de nuvem. O meu passaporte
são as tuas mãos; o mapa que nos guia,
a respiração incerta do desejo.
«Por isso me perco», dizes.
«Por isso te encontro», respondo.
E a noite que nos separa é o dia que nos reúne.

Nuno Júdice




Cansaço


Arte de António Costa Pinheiro

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos




sábado, 23 de maio de 2020

Eu ouso a paixão



Imagem da Web 

Eu ouso a paixão
não a recuso

Escuto os sentidos sem o medo por perto
troco a ternura da rosa
ponho a onda no deserto

A tudo o que é impossível
abro e rasgo o coração
Debaixo coloco a mão
para colher o incerto

Desembuço* o amor
no calor da emboscada
infrinjo regras e impeço

Troco o sonho dos deuses
por um pequeno nada

Desobedeço ao preceito
e desarrumo a paixão
Teço e bordo o meu avesso
e desacerto a razão

Maria Teresa Horta




* substantivo masculino
. Ato de desembuçar.

de·sem·bu·çar - Conjugar
verbo transitivo

1. Tirar o rebuço; descobrir a cara.
2. Mostrar-se.



Canção com gaivotas de bermeo


 Fotografia de Helder Reis

É Março ou Abril?
É um dia de sol
perto do mar,
é um dia
em que todo o meu sangue
é orvalho e carícia.

De que cor te vestiste?
De madrugada ou limão?
Que nuvens olhas, ou colinas
altas,
enquanto afastas o rosto
das palavras que escrevo
de pé, exigindo
o teu amor?

É um dia de Maio?
É um dia em que tropeço
no ar
à procura do azul dos teus olhos,
em que a tua voz
dentro de mim pergunta,
insiste:
Se te fué la melancolia,
amigo mío del alma?

É Junho? É Setembro?
É um dia
em que estou carregado de ti
ou de frutos,
e tropeço na luz, como um cego,
a procurar-te.

Eugénio de Andrade



 

Não te arrependas de nada


Imagem via Pinterest
 
Não te arrependas de nada.
Um verso está sempre certo
mesmo quando errado. A verdade
também, mesmo quando dói

ou fere ou parece inoportuna.
A verdade nunca é inoportuna.
O teu inconformismo é o preço
da nossa libertação e teus versos

florescem no coração do povo.
Não. Não te arrependas de nada.
Não torças o verso, não obrigues
a palavra: um poeta está

sempre certo. Não permitas que o óxido
dos políticos entre na lâmina
dos teus versos. Um poeta não se vende,
não se compra, não se emenda.

A um poeta corta-se-lhe a cabeça.
E uma cabeça cortada não dói, mas
tem uma importância danada.

Rui Knopfli
(poeta, jornalista e crítico literário e de cinema português)





Trinta



Fotografia: Betina La Plante

Hoje aconteceu-me mais um cabelo branco
(não sei se tinhas dado com este:)
fica
mesmo ao lado da risca entre os
vinte e nove e
os trinta. O
dia de amanhã já existe ora
(a hora nas agendas)
lembra uma camisa limpa que
drapeja ao secar
(cada dia que me aceita
propõe
novo recomeço).
Todos temos uma alma gémea
frente ao espelho
tinha feito 15 anos
(hoje acatei outros quinze)
foi sempre no gesso da idade
que
assinei o poema.

João Luís Barreto Guimarães





O teu coração dorme comigo

 
 Imagem via Pinterest
 
Aceitar o dia. O que vier.

Atravessar mais ruas do que casas,
mais gente do que ruas. Atravessar
a pele até ao outro lado. Enquanto
faço e desfaço o dia. O teu coração
dorme comigo. Agasalha-me as noites
e as manhãs são frias quando me levanto.
E pergunto sempre onde estás e porque
as ruas deixaram de ser rios. Às vezes
uma gota de água cai ao chão
como se fosse uma lágrima. Às vezes
não há chão que baste para a enxugar.

Rosa Alice Branco



 

Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

Postagens populares

Total de visualizações de página