Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Recado

 

Mural de Duek Glez, "Amor Eterno" in La Nopalera, Tláhuac, Mexico, 2020

Estou aqui como se te procurasse
a fingir que não sei aonde estás
queria tanto falar-te e se falasse
dizer as coisas que não sou capaz.

Dizer, eu sei lá, que te perdi
por não saber achar-te à minha beira
e na casa deserta então morri
com a luz do teu sorriso à cabeceira.

Queria tanto falar-te e não consigo
explicar o que se sofre, o que se sente
e perguntar como ao teu retrato digo
se queres casar comigo novamente.

António Lobo Antunes

 


Parecia-lhe impossível

 

Arte de Meliha Bisic
 
Parecia-lhe impossível um silêncio assim
sem arestas nem constrangimentos,
O silêncio de dois seres que já não precisam falar para se sentirem juntos,
que já não precisam de se tocar para se saberem envolvidos um com o outro.
O silêncio do amor.

Inês Pedrosa
in Os íntimos
 
 
 
 

sábado, 19 de dezembro de 2020

J'ai lu des fleurs *


Do velho hábito
de guardar flores secas
em livros preferidos,
reencontrar os cheiros
em releituras,

te guardo,
te releio.

Yara

 

* do francês: "eu leio flores" 



A falta de Érico


 
Escultura em homenagem a Érico Veríssimo, na sua cidade natal de Cruz Alta, RS

Falta alguma coisa no Brasil
Depois da noite de sexta-feira.
Falta aquele homem no escritório
A tirar da máquina elétrica
O destino dos seres,
A explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom
Caminhando entre adultos
Na esperança da justiça
Que tarda - como tarda!
A clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,
Aquela ternura contida, óleo
A derramar-se lentamente.
Falta o casal passeando no trigal.

Falta o solo da clarineta.

Carlos Drummond de Andrade



* Em dezembro de 1975, quando da morte do poeta Érico Veríssimo, CDA escreveu esse poema-homenagem
 
 
 


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

No teu abraço



Imagem: Google

Três fósforos um a um acesos na noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O terceiro para ver a tua boca
E toda a escuridão para ver tudo isso
Apertando-te nos braços.

Jacques Prévert
in Paroles




Na fogueira da memória

 
Imagem: Google

~excerto ~

A memória é uma fogueira, quando a julgamos extinta,

reacende-se, para entendermos que nada se perdeu
Ainda escrevo, não para que regresses, mas porque acredito
que, sem o dizeres, sabes que no teto da noite
guardo o poema que sempre escreverei para ti,
não importando se o irás ler ou se menti
dizendo que o escrevi. Ainda moras aqui

E escrevo poemas

Ivo Machado
 
 
 
 

Mar

 
 desconheço a autoria da imagem

Bebo-o a colherinhas de olhos
na taça da manhã.
E nem ele se esgota,
nem eu me sacio.

Luísa Dacosta
 
 
 

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Devias estar aqui

 

 Imagem: Jeune fille-Petit Palais (Paris)
 
 Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum

Eugénio de Andrade 
 
 
 
 

Não te voltarei a ver

 

Imagem via Pinterest
 
 não te voltarei a ver. espera por mim
apenas no coração, onde
te farei sempre crescer e
onde, acima das minhas
forças, me trarás o amor e
a felicidade de um dia te
haver conhecido. bastar-me-ei
obrigatoriamente com isso, e
acreditarei que não enlouquecerás,
para exerceres a piedade de
fazer o mesmo por mim

valter hugo mãe
in Exercício do Bom Amor 
 
 

Basta que existas

 

Fotografia de Екатерина Семенцова @nichaykat

Hoje escrevo-te em papel timbrado por um chão de ardósia.
Entra por esta folha ensina-me a mudar a página dos teus olhos.
Diz-me que o meu nome não é um borrão sobre os dias.
Não preciso que me vejas basta que me encontres no berço das quimeras.
Não necessito que me abraces num solo calcinado de promessas.
Basta que leias no olhar enxuto do poema.
Se o amor é uma rosa-dos-ventos basta que existas em todas as latitudes.

Alberto Serra
Obra Poética
 
 
 


Havemos amado juntos

Екатерина Семенцова @nichaykat b&w portrait
 
Havemos amado juntos tantas coisas
que é difícil amá-las separados.
Parece que se houveram afastado de repente
ou que o amor fora uma formiga
escalando os declives do céu.

Havemos vivido juntos tanto abismo
que sem você tudo parece superfície,
orbita de simulados que resvalam,
tensão sem extensões,
vigilância de corpos sem presença.

Havemos perdido juntos tanto nada
que o hábito persiste e se da volta
e agora tudo é ganância de nada.
O Tempo se converte em anti-tempo
porque já não o pensas.

Havemos calado e falado juntos
que até calar e falar são duas traições,
duas substâncias sem justificação,
dois substitutos.

O havemos buscado todo.
O havemos falado todo.
O havemos deixado todo.

Unicamente não nos deram tempo
para encontrar o buraco de tua morte
ainda que fora também para deixá-lo.

Roberto Juarroz
 
 
 


Antes que o rio brotasse

Fotografia de Artur Pastor

antes que o rio brotasse. antes da fonte. antes. bem
a alma das águas já corria
na solidão subterrânea

guiada pelo desejo insano
de ver. o sol
 
Nydia Bonetti 
 
 
 

 

Que nome te dar?

Fotografia de Giuseppe Gradella
 
Que nome te dar?
Não há outro como tu.
Somos cada um um pouco do outro.
Tu és a outra metade de mim.
A parte de ti que de mim ficou.
A parte de mim que foi contigo.
Ninguém me está tão próximo
e ninguém me escapa tanto.
Como pode ser que constantemente nos encontrávamos
e sempre nos perdíamos?

Livre adaptação de um treco de Manuel Alegre, em “A terceira rosa”




segunda-feira, 9 de novembro de 2020

De braços cansados de remar

 

Fotografia de Emoraes, em Urban Arts
 
 De braços cansados de remar, optara, um dia,
por desenhar o marinheiro, com quem fugiu
na direção do vento. Depois, quando a maré
subiu nos confins do corpo, as suas mãos
naufragaram num mar sem vestígios de barcos.
E uma alegria, adiada de muito longe, doeu-lhe
nos pés, duplamente exilados.
Agora, nas margens da lua cheia, há uma mulher,
em cujo rosto se passeia o lado mais claro da noite.

Graça Pires
De Reino da lua
 
 
 

Cartas de amor

 Desconheço a autoria da imagem

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos

 

 


Somos folhas breves

 

Imagem da Web
 
 Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer,
Por isso a cada gesto que fazemos
cada vez se transforma noutro ser.

Eugenio de Andrade
in As mãos e os frutos
 
 
 

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Percorrer-te como um rio

 Deseos y abrazos, pintura de Nicoletta Tomas
 
 Quero lá saber
que me chames louca ou sonhadora
Gosto é de entrar por ti adentro
pela porta do olhar
com os pés descalços e a pele nua,
atravessar-te o coração,
rasgar-te o peito, de pólo a pólo,
e percorrer-te como um rio..

Ana Mateus



 

Corre as cortinas à morte do silêncio

 Imagem via Pinterest

No amor há um mar revolto.
Abrasadores, os sentidos irrompem
do vazio.
Um gato dorme sobre o piano.
Corre as cortinas à morte
do que sente:
um banco vazio no escurecer
da sua clausura.
Os vultos das gaivotas perdem-se
nas janelas
e o mar é o coração duma mulher.

Eduardo Bettencourt
in Um dia qualquer em Junho


Faz vento lá fora

 

Imagem via Pinterest
 
 não estou certo de nada. gostava, contudo,
de acreditar que existes, para te esperar
sem angústia, talvez pôr a música mais baixo, ouvir
os vizinhos a conversar, preparar coisas para te
dizer, ler um livro, vestir-me. gostava de ter
por ti um amor convencional, sem ter de o
imaginar. com um jantar pelo meio, um passeio
no mais popular do parque, a ver cisnes e a
fugir dos cavalos. mas não estou certo de nada, e
mais fácil é fechar as portadas, escolher um cobertor
quente e fazer com que vente mais e mais lá fora

valter hugo mãe
 
 
 

Anjo

 

 
Escultura de arame de Richard Stainthorp

Não são mais
os velhos fardos
que me impedem de voltar,
mas o que há de mais,
dos mesmos sonhos,
que me impele a voar.
Acredito em tudo aquilo
que pode ver, o olhar,
mas também não ponho dúvidas
no que só os olhos cerrados
podem contemplar.
Sou um homem alado.

Eupaitio Caska
 
 
 

Um olhar

 

 Fotografia @SixteenMilesOut - todos os direitos reservados
 
 Se um dia passares pela nascente de um rio
visita a minha sombra úmida,
indiferente à inquietação das árvores
carregadas da memória do vento.
Pára e inclina sobre ela um olhar tão cúmplice
como quem, com lentíssimas mãos,
pressente o apelo dos lábios.

Graça Pires
De Conjugar afetos, 1997
 
 

Este teu estreito apertar

 
 Escultura de Gaylord Ho

Como amo esse teu estreito apertar,
quando perco entre os teus braços o meu peito...
Como é triste o despertar neste meu leito
de princesa, que não sabe como amar...!

Eu, que tenho em mim a fome e o desejo
reunidos mansamente, enlaçados,
já não acredito em deus, nem em pecados,
já só quero andar perdida nos teus beijos!

Mariana Reis 
 
 

Coisa diacho tralha


Bradley Sabin, Instalação no LSU Museum of Art

sobrevivente da calamidade
amor não tem cara nem metade

amor coisa diacho tralha
não divide nem migalha

amor silêncio da loucura
todo dia contigo amanhece

amor inferno que você carrega
e desconhece

Alice Barreira
 
 
 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Paisagem com frutas

 "Naturaleza muerta con frutas de pera en el fondo rústico", by ilovehand41

Duas peras sobre a mesa
esperam a tua fome.
O dia é verde
e o vento tem cores provisórias.

Sobre o muro
um pássaro mudo
de olhar escuro
perscruta a tua sombra.

Ele sabe
que ninguém sabe
em que azul
ocultas
teu absurdo.

Maria Esther Maciel
in Triz

 

 

Tão cúmplices, as palavras

 

Imagem da Web

Às vezes vêm de muito longe:
de fatigadas viagens,
de mortes prematuras,
de excessivas solidões.
Mas vêm.
E trazem a inicial pureza das fontes.
E a lâmina do silêncio
E a desordem da noite.
E a luz extenuada do olhar.
Tão cúmplices, as palavras.

Graça Pires

 

 


Eu te amo é uma concha vazia


 Imagem via Freepik

"Eu te amo"
é uma concha vazia
onde ecoam mentiras primevas.

"Eu te amo"
é um possível mantra
de retorno à origem do fogo.

"Eu te amo"
é inversamente proporcional
à tua ânsia de amar.

Lívia Soares

 

 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Mesmice


"Patience", by Jacob-Joseph

— estou oca —
melhor louca
que assim pouca

Celina Portocarrero
 
 
 

Metamorfoses


Arte de Rala Choi

permanecer o mesmo
ao revolver-se outro
dentro de todos
escombro de encontros
atônito
simulacro de assombros
monstro
epígono de anônimos
...
do desterro do tempo
o enredo do corpo,
lento volteio até o outro,
alheio e incôngruo
ignoto de mim
assomo meu todo

Danilo Bueno
in Corpo Sucessivo (2008)
 
 


Outono

 

Natureza morta com cesta de frutas (1888-1890), Paul Cézanne

Não sabemos que fruto se pressente na boca,
confirmando um tempo de colheita.
Urgente se torna refazer o frágil
caminho das manhãs: um trajeto de água
nas pupilas dos pássaros, conquistando planícies,
fontes, lábios. Umas vezes vento, outras vezes barco,
mas sempre coniventes com a ilusão que se maneja
como um desvio para escapar à morte.
Setembro escreve-se a cor de mel,
quando a luz quase emerge da terra
e os dias, mais curtos, garantem que o sol
se reconcilie com a noite.

Graça Pires
in Ortografia do olhar

 


Há dias

Fotografia de Gregorius Suhartoyo

Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos

as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.


Eugénio de Andrade
 
 

Os dias iguais

Arte de Rafal Olbinski

 os dias iguais são ensaios
de eternidades

todos os dias são um só
dia

as dores: memórias
equecidas

as alegrias

o canto tardio
do pássaro ego

os lírios

tudo
como num grande e fugaz

delírio

Nydia Bonetti

 

 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Naufrágio inconcluso

 

"Dama com Leque", de Pablo Picasso

Esse temporal a destempo, essas grades nas meninas dos meus
olhos, essa pequena história de amor que se fecha como um
leque que aberto mostrava a bela alucinada: a mais
nua do bosque no silêncio musical dos abraços.

Alejandra Pizarnik 

 


Filhas do vento

 

Fotografia de Francesca Woodman
 
 
 Vieram.
Invadem o sangue.
Cheiram a plumas,
a carência,
a pranto.
Mas você alimenta o medo
e a solidão
como a dois animais pequenos
perdidos no deserto.

Vieram
incendiar a idade do sonho.
Um adeus é sua vida.
Mas você se abraça
como a serpente louca do movimento
que só se encontra a si mesma
porque não há ninguém.

Você chora debaixo do seu pranto,
você abre o cofre dos seus desejos,
e é mais rica do que a noite.

Mas há tanta solidão
que as palavras se suicidam.

Alejandra Pizarnik
 
 
 

Em desconstrução

 

Fotografia de Antonio Palmerini

principiou em mim
e terminou em algum lugar
em construção

quando se desliga a música
antes dela acabar
o ar fica freado
no espaço

vou para rua e não escuto
o murmurar do mundo

há tanto para se fazer
e quando algo começa
em algum ponto
e resolve continuar em mim
sinto que permanece para sempre

nunca há fim nos princípios
tudo é eterno e inacabado

Lara Amaral

 



À beira d'água moro

Foto gratuita de Pixabay

À beira d'água moro,
à beira d'água,
da água que choro.

Em verdes mares olho,
em verdes mares,
flor que desfolho.

Tudo o que sonho posso,
tudo o que sonho.
E me alvoroço.

Que a flor nas águas solto,
e em flor me perco
mas em saudade volto.

Cecília Meireles
in Metal Rosicler´

 

 


segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Num abraço

Imagem da Web

Ponho o meu dedo sobre os teus lábios
para que não fales.
Hoje doem-me as palavras.
E só o silêncio se ajusta
à tristeza de ter as asas molhadas
e ser ave ferida agarrada ao chão.

Ponho os teus braços à volta do meu corpo
para que me abraces sem nada dizer,
com todas as tristezas presas na garganta
onde tantos gritos se calam.

Encosto o meu corpo ao teu,
sinto os mudos abismos da tua pele
e tomo as tuas mãos entre as minhas
para que dances comigo... neste silêncio.

Ana Mateus


 

Erro de expressão

 

Imagem da Web

O arco-íris cai não interferindo
Nas cores do quadro. O pintor
Agradece. O peixe lento
Que o pintor trouxe ao mundo tem
Cores despropositadas, porém não há nenhuma razão
Para apontar aos peixes a responsabilidade
De um erro, afinal,
Estético.
Quanto à literatura: não falha na cor,
Mas jamais acerta nas palavras.

Gonçalo M. Tavares

 


Barca bela

 

Fotografia de Mohammad Alaa, in DeviantArt

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Oh pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador.

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Oh pescador!

Almeida Garrett
in Folhas Caídas
 
 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Anunciação

 

Imagem da Web
 
Esperas que o anjo pouse, e te abrace
com o seu tédio de asas. Entregas-lhe
os teus lábios abertos como a flor
saciada de água. Abres-lhe o teu corpo,

para que ele pouse no copo dos teus
seios, e beba o licor da primavera.
«Quem és tu?» perguntas-lhe, «anjo
ou demônio?» E não te responde;

segura-te a mão; puxa-te para o
canto. Vais atrás dele, sem saber se
há regresso. Pedes-lhe que não olhe

para trás, que se esqueça do mundo.
E ambos se afastam, sem dar resposta,
como tivessem decidido, e o soubessem.

Nuno Júdice
in O Breve Sentimento do Eterno


 
 

domingo, 13 de setembro de 2020

Deixei que fosse embora

Fotografia de Gemma Silvestre
 
deixei que fosse embora, achando que era pouco. 
pequena gota d'água. 
deixei que fosse embora, sem saber que eu secaria com o tempo. 
que eu viraria deserto.

Eduardo Baszczyn
 
 
 
 
 
 
 
 


 

Meu coração é um lugar à meia-luz

 

Imagem via Pinterest
 
 meu coração é um lugar à meia-luz
eu murmurava
quando você partia e deixava
um pedaço do seu rancor
à madrugada e nos postais
revirados e entardecidos
tristes como um lenço
em sua caixa de naftalina,
uma estampa e a música
que se repete sempre que acordo, sedenta e sombria
esbarrando em minha própria casa desconhecida
acompanhando os passos no telhado, o recomeço dos verões um alarde: a moça grita da janela
será que já amanheceu? a água acabou e estamos todos suados inacabando o dia, revendo fotos, anotando trechos
do domingo
restam as flores que não comprei a luz apagada
o medo de que mais uma vez uma segunda pese como se passassem anos.

Lorena Martins
 
 
 

Segunda Poesia Vertical, 5

 
Arte de Vladimir Dunjic
 
Se alguém,
caindo de si mesmo em si mesmo,
tateia para sustentar-se a si
e encontra entre ele e ele
uma porta que leva a outro lugar,
feliz dele e dele,
pois encontrou seu esboço mais antigo,
a primeira cópia.

Roberto Juarroz
 
 
 



De manhã


Lago Blausee: o Lago Azul da Suíça (desconheço a autoria)

Diante deste lago
tão vasto que parece um mar
ouço o leve ruído das suas pequeninas ondas
estirando-se na areia.

Um lago é uma água prisioneira:
só o mar atira para fora
para longe

Mas o mar está preso à terra.

Ana Mateus

 


Amor pássaro


Foto de Cruzin Canines Photography

Te amo com amor de passarinho.
Sujo de lírios e acácias.
Enamorado por rosas e violetas
E enfeitado de girassóis,
Te amo com amor de passarinho.
Perfumado de arco-íris e magnólias
Que levanta voo de meu corpo.
E viaja no tempo.

Morgado Mbalate




Percepção subjetiva

 Imagem  via Pinterest

~ excerto ~

Não sei que nome chamar-te.
Nem onde estão os passos
que quero sombra dos meus.
Talvez eu seja um livro cansado
de tanto me leres,
ou tão-pouco saibas
onde ficou o marcador de página
O eterno é tão efêmero
que nem damos pelo presente.

Francisco Valverde Arsenio

 


Epílogo

Imagem via Pinterest

A saudade é um verbo estranho
Que se conjuga teimosamente no presente
Um espartilho da alma de aperto sem tamanho
Um olhar sem limite, mas onde só apanho
As letras que te fazem viva na minha mente.
E por ser um verbo sem qualquer conjugação
Sem ser aquela que ainda me traz a memória
Rompo o espartilho e grito que o meu coração
É um livro estranho onde vives pela minha mão
Em letras tortas que contam a nossa história.

João Dordio

 


Entre

 
Imagem via Pinterest

Entre, a porta está aberta.
invade meus sonhos, descubra meus segredos,
alivia minhas dores, meus medos.
Ocupe os espaços que sempre foram seus.
Estão vazios.

Abra as janelas de minh'alma,
deixa a felicidade entrar junto com você.
E depois vai embora de mansinho,
pra não me acordar, não machucar.

Sei que não podes ficar.
Deixe a porta aberta pra quando quiseres voltar.

Lya Darella Ramos



sábado, 5 de setembro de 2020

Memória é uma marmota

"Reflection", de Lisette Model Photography
 
memória é uma marmota tartamuda
sai da toca raramente
sai mancando, assustada
volta com pressa aos desvãos
que lhe abrigam

tempo comeu duas patas suas
tempo e memória têm fome
memória tem medo da morte
mais ainda tem o tempo
morte não falha

espera tempo ficar entretido
à caça de memória
não muito, não muito raro
ainda com o rabo de memória dando voltas
para fora da boca do tempo
chega a morte e come
tempo e memória ao mesmo tempo.

Fabíola Lacerda






segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Murmúrio de ausência

 
Fotografia de Heloisa Hayon
 
as margens da lagoa
acompanham os passos da tua silhueta
reflexos de ti
invadem as águas serenas
e preenchem o meu horizonte
em ecos fugazes
assola-me o murmúrio da tua ausência.

João Carlos Esteves 
 
 
 
 


Vem comigo

 
Arte de Paolo Domeniconi

vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas

iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólens e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os notívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforme e morre
e já não nos pertence

vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel

vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu

Al Berto
in Uma existência de papel




Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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