Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

quarta-feira, 25 de março de 2020

Ah, se pudésseis aqui ver poesia que não há!


 Imagem da Web

Um retângulo oco na parede caiada Mãe

Três barras de ferro horizontais Mãe
Na vertical oito varões Mãe
Ao todo
vinte e quatro quadrados Mãe
No aro exterior
Dois caixilhos Mãe
somam
doze retângulos de vidro Mãe
As barras e os varões Mãe
projetam sombras nos vidros
feitos espelhos Mãe
Lá fora é noite Mãe
O Campo
a povoação
a ilha
o arquipélago
o mundo que não se vê Mãe
Dum lado e doutro, a Morte, Mãe
A morte como a sombra que passa pela vidraça Mãe
A morte sem boca sem rosto sem gritos Mãe
E lá fora é o lá fora que se não vê Mãe
Cale-se o que não se vê Mãe
e veja-se o que se sente Mãe
que o poema está no que
e como se vê, Mãe
Ah, Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

Mãe
aqui não há poesia
É triste, Mãe
Já não haver poesia
Mãe, não há poesia, não há
Mãe

Num cavalo de nuvens brancas
o luar incendeia carícias
e vem, por sobre meu rosto magro
deixar teus beijos Mãe, teus beijos Mãe

Ah, se pudésseis aqui ver poesia que não há!

Antonio Jacinto




Alphabeto



“Canto d’amore” by Leonardo Bistolfi

Dactilas-me o corpo
de A a Z
e reconstróis
asas
seda
puro espanto
por debaixo das mãos
enquanto abertas
aparecem, pequenas
as cicatrizes

Ana Paula Tavares



Perguntas-me do silêncio

 
 Linda In Love - Vogue US (1993)
Linda Evangelista & actor Kyle Maclachlan

Perguntas-me do silêncio
eu digo

meu amor que sabes tu
do eco do silêncio
como podes pedir-me palavras
e tempo
se só o silêncio permite
ao amor mais limpo
erguer a voz
no rumor dos corpos

Ana Paula Tavares 



 


Meu corpo é um grande mapa muito antigo


Fotografia de Jean Paul Bourdier
 
Meu corpo é um grande mapa muito antigo
percorrido de desertos, tatuado de acidentes
habitado por uma floresta inteira
um coração plantado
dentro de um jardim japonês
regado por veias finas
com um lugar vazio para a alma.

Ana Paula Tavares




Amargos como os frutos


 Fotografia de Alexandre Bordereau

Amado, por que voltas
com a morte nos olhos
e sem sandálias
como se um outro te habitasse
num tempo
para além
do tempo todo

Amado, onde perdeste tua língua de metal
a dos sinais e do provérbio
com o meu nome inscrito

Onde deixaste a tua voz
macia de capim e veludo
semeada de estrelas

Amado, meu amado,
o que regressou de ti
é a tua sombra
dividida ao meio
é um antes de ti
as falas amargas

como os frutos.

Ana Paula Tavares




É sempre à noite que mais dói


Arte de Montserrat Gudiol 

É sempre à noite que mais dói
Dizia-me o amigo
Chega a febre
O cheiro ácido do pântano
O silêncio gelado dos nossos mortos
A presença inquieta dos outros
O lento movimento das dunas

Ana Paula Tavares
em "Como veias finas na terra"



 

O cercado


Ilustração: Maternitat, por Evelyn Williams

De que cor era o meu cinto de miçangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado

Ana Paula Tavares




Rasga a noite



Arte by Christian Schloe
Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
não canta
Abre a boca
e solta os pássaros
que lhe povoam a garganta

Ana Paula Tavares




terça-feira, 24 de março de 2020

Outros amaram em mim a mulher que vive


 
 Arte de Nelly Recchia

outros amaram em mim a mulher que vive
mas a ti peço para amar aquela que está morrendo

na minha voz, ama o que não sei dizer

no quarto, o período da manhã
quando a boca pronuncia as palavras ainda inchada pelo sangue

meus braços
minhas mãos à beira das tuas

outros me amaram em terra
mas a ti peço que me ames no mar

e porque eu sou mar
se um dia tu me vires chorando diante de ti, olha-me como quem tivesse devoção por minhas lágrimas

como quem imaginasse que é raro como o nácar
o sal dos meus olhos

mar becker






No início eu te amei



Arte de Laurie Kaplowitz

no início eu te amei pelo que em ti
se revela:

teus olhos
tua boca
tua voz dizendo meu nome

depois, aprendi a te amar mais profundamente

pelo que em ti se oculta:

no teu olhar, uma ave que migra

no desenho da tua boca, o ponto
de fuga

na tua voz, a tua voz
suspensa, dizendo meu nome à noite

perdendo-o
num fio de ar

mar becker




quinta-feira, 19 de março de 2020

Os dois


 Photo collage by Loui Jover

Eles eram dois
Mas nem sabiam que eram dois
pois os dois eram sozinhos
e se sentiam assim
sozinhos
os dois
Às vezes ficavam abraçados
testemunhando enchentes
e dividiam segredos e riam das bobagens um do outro
e telefonavam sempre
um para o outro
só numas de ouvirem
a voz
um do outro
Eles não eram felizes
E falavam alto nos bares
E contavam histórias estapafúrdias
os dois
Se encontravam
no meio de tanta gente
Eles sempre se encontravam
e sorriam tímidos um para o outro
porque eram sozinhos
os dois
e por um momento já não era tão assim
eles eram quase dois
mesmo sozinhos
assistindo filmes de madrugada
e pegando no sono
abraçando almofadas
sozinhos
bêbados
tomando comprimidos pra dormir
aviltados com a publicidade
que cercava a solidão dos dois
E eles queriam fugir
E ele queria entrar dentro dela
E ficar lá o resto de sua vida
não pra ser um
mas pra ser dois
definitivamente
de uma vez por todas
os dois.

Mario Bortolotto




terça-feira, 17 de março de 2020

Apenas pensei


Arte de Oleg Dou
 
É que eu tive medo
É que eu tive amor
E tive uma maresia enorme,
Como quem parisse o céu de
Van Gogh em centelhas,
Em espirais
E subisse ao Cristo,
E depois dormisse tonta,
Com tantos flashes noturnos
E sem piscar milagres,
Cometesse pecados
E outra vez amasse
Amasse demais!

Lia Boká 




Um poeta não é feito pra ser conhecido


Imagem da Web
 
um poeta não é feito
pra ser conhecido

é feito
pra viver escondido

debaixo de um pé de mesa
duma asa de xícara
da parte da vela mais derretida

um poeta
nao é feito
pra ser visto

é pra ser lido
enfrentado dobrado
marcado apagado
e depois um grito

largado lá onde ele respira
naquela sombra interna
ausência inteira
onde ele habita

Pat Lau






sábado, 14 de março de 2020

Dante's urban bar


 Imagem via Pinterest

me detive com uma latinha de cerveja na mão
perdido entre o tédio e o asfalto

um poste ilumina
o meio do caminho
zen budismo

um cão me guia por entre carros
e calçadas
na noite suarenta

sobre a faixa de pedestres
parado pensando em
nada

o puro nada
o vento
a solidão dos poemas
de boteco

um gole a mais
pouco importa
se o círculo infinda?

nove bares mal
ajambrados
acenam do outro lado

nenhum barco me leva
eu não me levo
eu me detenho

com uma latinha de cerveja na mão
perdido entre o tédio
e o asfalto"

Sérgio Villa Matta








Gérberas


 Imagem da Web

São as gérberas tuas preferidas?
Gérberas me tornarei!
Que devoção maior queres tu
Do que um corpo que se transforma em flor.

Cari Lobo



 

Lições para estripar um homem


 Arte de Jean-Michel Basquiat 

primeira lição para estripar um homem:
estripa-se o seu nome em praça suja
sua língua na lama sua sombra na sombra
em cada passo um golpe de medo
e no segredo que nunca houve
as larvas de milhões de segredos

segunda lição para estripar um homem:
para saber sua altura usar a régua do porco
a régua do rato a métrica do nojo
a balança do fogo: cada quilo valerá
menos que o outro e cada centímetro
um corpo a menos: a menos que o corpo
se jogue da ponte ou do porto
e poupe o inútil trabalho da vila
de matar um homem morto

terceira lição para estripar um homem:
não se estripa um homem só:
estripam-se os avós e netos
amigos silêncios e objetos
que cercam o homem a ser estripado
e tudo deverá caber no mesmo saco
um mundo inteiro reduzido
ao suposto fato de que tudo
retornará ao nada de que foi originado

quarta lição para estripar um homem:
estripa-se a palavra do homem
o dito o não dito o interdito
naquilo que sendo fala também cala
o que o torna homem: sua palavra
de homem que agora estripada
vale nada ou menos o que a pele
diria à faca: bem-vinda, senhora
sinta-se em casa

quinta lição para estripar um homem:
após estripado lança-se tudo
no fosso do fundo do calabouço
entre outros tantos estripados
carcaças de sonhos pedaços de loucos
para que até o fim dos tempos
de nenhum corredor possa brotar
o vivo reflexo de seus olhos

sexta lição para estripar um homem:
a vila inteira deverá lavar a praça
as ruas as casas as igrejas as estradas
e a própria vila deverá mergulhar
e manchar o rio com o vermelho
que escorrer de suas roupas pálidas
e queimá-las numa fogueira imensa
e caminharem nus e em silêncio
cada um em direção à cova de sua casa

última lição para estripar um homem:
verificar com exato cuidado
se a baleia não quer vomitá-lo
se não possui uma flauta de pedra
ou uma antiga lira afiada
que faça arrepiar a terra:
neste caso foi inútil estripá-lo:
multiplicado milpartido libertado
ele rompe a corrente do tempo
e atinge maior o outro lado:
inútil o sono da vila enquanto
canta o estripado

Carlos Moreira




sexta-feira, 13 de março de 2020

A vida é muito curta



Rudolf Hess dá autógrafo  nos Jogos Olímpicos de Berlim, 1936

a vida é muito curta
para se ser um
filho da puta 

na dúvida
vinhos amigos
e livros

e um pouco antes
de fechar a conta
um grande salto
na chama

dizendo ao vento
queima maldito
e ao abismo
vinde sacana

Carlos Moreira  



quinta-feira, 12 de março de 2020

O que os olhos contam


Fotografia de Eupaitio Casko

orvalhados
os olhos
desde
cedo
são que são
só medo
e nada mais

Eupaitio Caska




Breviário


Fotografia de Dalva Nascimento

todo dia
a vida vem
e me diz
que tudo que traz
ela mesma faz
e por um triz
não se perde
de tão frágil que é

Eupaitio Caska




Amarelinha


Fotografia de Eupaitio Caska

traça linhas
no chão
riscas de giz
pula numa
perna só
sozinho
e feliz
para chegar
no céu

Eupaitio Caska






Flor amarela



Tela de Marcelo Castro

Atrás daquela montanha
tem uma flor amarela;
dentro da flor amarela,
o menino que você era.

Porém, se atrás daquela
montanha não houver
a tal flor amarela,
o importante é acreditar
que atrás de outra montanha
tenha uma flor amarela
com o menino que você era
guardado dentro dela.

Ivan Junqueira




domingo, 8 de março de 2020

[sem título


 imagem da Web

escrever o poema
como se aria uma panela velha
até que de seu ferro
se extraia um espelho
em que se veja no branco do olho
a lágrima dele escorrida
no dia anterior.

Zainne Lima da Silva 




Versos de circunstância


Imagem via Hidee Tatoo
 
eu não entendia
e ela se mexia tanto ao meu lado
e aqueles bancos apertados
o ar condicionado gelando
tudo (os brincos dela,
o meu humor)
mais de uma hora cruzando
ruas, avenidas, parágrafos -
o livro gritando alto
para um mundo ensurdecido
depois de arrumar-se mais
algumas dezenas de vezes
o sol já estava no meio do céu
quando ela se levantou
foi então que percebi que três
pequenos pássaros
voavam em suas costas

Fabiano Calixto




Dias já maduros

 
Fotografia de Jamie Nelson 

Dias já maduros
mostram a polpa
para dente
que morderão
um após o outro
cautelosamente
para não engolir
seus caroços

:somos reféns
na terna carne do tempo

Prisca Agustoni




começo esta carta no leito

 
Pintura Surreal de Jeff Christensen
 
começo esta carta no leito
do rio retornado
depois do desaparecimento do mundo
com nosso filho nos braços
e seu hálito recolhido
nas linhas da mão

escrevo no couro do tempo vivido
no rio de agora quase um não rio
deixo suas línguas lavarem a dor
escorrida pelos dedos
enquanto a criança bebe do leite
que um dia fomos

Inês Campos



 

C3H6OS


"Peeling Onions"de  Lilly Martin Spencer (1822 – 1902)

Chore.
Chore até soluçar. Permita
que a mobília desmorone. Leia
um poema de Paulo Henriques Britto. Ouça
Dolores Duran no Spotify. Corte
uma ou duas cebolas na cozinha.

Elas exsudam abandonos antioxidantes.

Prenda, então, a lágrima com chave
espartana, como fez dias atrás, e
caminhe pelo centro da cidade.

Os miseráveis conseguem cortar cebolas sem chorar.

Noélia Ribeiro


Nota sobre o título do poema:
 O S-óxido syn-Propanethial, um membro de uma classe de compostos organossulfurados conhecidos como S-óxidos tiocarbonil, é um líquido volátil que atua como um agente lacrimal. O produto químico é liberado das cebolas, Allium cepa, à medida que são cortadas. (fonte: Wikipedia)





 

Ampulheta


Imagem via Pixabay

A folha pendeu-se do galho
e verde ainda agarrou-se ao telhado
não demora setembro, até que ela caia
marrom e devagar
neste dia aprendi do tempo:
a cor
a queda
a silêncio

Adri Aleixo



 

Os homens ásperos

 
Arte surrealista de Lukasz Banach
 
os homens ásperos derramam sobre o mundo
palavras intestinas
gotejam fel
sangram corpos e sonhos

nunca se aninharam
à espera da névoa
e da luz
de uma certa manhã antiga e calma

os homens ásperos se aliam e se vendem
como se detivessem o verbo
e a verdade
como se consentissem a vida e suas bênçãos

cegos e rebotos      divertem-se a lançar
garras pontiagudas sobre nossas cabeças

eles nunca saberão a cor dos teus olhos
eles apenas se fartam de noites e tempestades

em todas as línguas

Dagmar Braga



 

Infinitude


Desconheço a autoria da imagem
 
Ao derredor do tempo 
(sorvo de luz e sombra)
o labirinto assoma

Não há porta que se abra
nem sinal que nos sustente

O desafio
é a tessitura e o fio

Não há rastro ou memória
na solidão do exílio

Tudo – a um só tempo –
é pressentimento /
origem
tédio/ espelho

                      Secreto e imenso – sempre –                      
o meu e o teu delírio.  

Dagmar Braga




Ensaio


 Arte do fotografo alemão Christian Martin Weiss

assim
aos poucos
vai-se dissipando

o riso
o cheiro
a voz

o nome do amigo
o amor
jurado e abjurado em sangue

diariamente o tempo ensaia a grande noite

Dagmar Braga



 

Inventário


 "Nostalgie", by Arthur Allen

eu te dou de presente
esta memória

– nuvens e sinos no entrecorte de vales –

um sonho redimido
entre paredes caiadas
unguentos
maldizeres

esta noite insone que me arrasta
e o despudor
do corpo

afeito ao teu desejo e desatino

Dagmar Braga




Cena



 Desconheço a autoria da imagem

Oblíquo,
um homem atravessa
a rua ao meio-dia
e seu corpo
é um baú de cansaços
onde labirintam mistérios

Enviesado,
não se importa
com metafísicas nem chocolates
e nenhuma tabacaria por perto
secreta o espanto
que o habita

Silêncio
ou vômito
apascentam
essa solidão ambulante

Ronaldo Cagiano



sexta-feira, 6 de março de 2020

IV


Foto: amazonianarede.com.br

Tu olhas para o rio
como se ele fosse teu
não o tens
não pode tê-lo
nem detê-lo
o rio é um instante
que nunca para de morrer
o rio é esse fio líquido
morrendo em si mesmo
nele
cada mergulho
é uma despedida

Wanda Monteiro




Poema para guardar de cor



Arte de Deborah  Dornellas

Bem mais que tocar com os olhos,
bem mais que mirar a paleta de cores,
ver é alterar o que é visto,
abraçar o mar mais do que contemplá-lo.
A cor da piedade já não basta;
a comiseração em si é pálida.
De que outro modo ver a cor dos pulsos
senão no pulsar?
A cor da febre, mais do que amarelo, era delírio;
e o lilás das águas-vivas,
se estoura na pele,
é que se faz mais vivo.
Descolorir algemas nos dará delírio.

Wender Montenegro




Ele deixou no sofá um papel de bombom



Fotografia de Philip Anderson Edsel 

ele deixou no sofá um papel de bombom
e uma taça vazia de vinho
ele deixou na casa o som dos passos que trouxe da rua
e a porta aberta do banheiro
ele deixou seu território marcado
e disse que talvez voltasse aquela noite
e me faria esquecer das sombras e dos abismos
que traria mais duas garrafas de vinho francês
ele disse que talvez voltasse aquela noite
com um livro de poemas que eu já tinha
ele não voltou aquela noite
mas um vento frio veio de algum lugar
e entrou sem timidez pela fresta de alguma janela

Adriana Godoy



Talvez pela falta de sol


Arte por Aykut Aydogdu

talvez pela falta de sol, não sei
hoje toda palavra sangra

e os silêncios sufocam

numa agonia que não desata
nós da garganta

Nydia Bonetti





Cadeira na varanda


Imagem da Web
 
Pendurei meu pensamento
entre a avenca
e a samambaia.
Num galho da roseira,
espetei
meu coração.

Sossegados,
enfim,

meus olhos pastam a grama do jardim.

Marcelo Sandmann



 

Queria



foto de Almir Bindilatti, todos direitos reservados

..
queria
tempo verbal
atirar-me sobre pontes
sobretudo
no teu cais sem porto

queria
tempo verbal
ver-te sem mar
sobretudo
no teu corpo sem relento

Lucia De Moura Chamma






Tem uma dor dentro

 
Arte por Laura Makabresku

tem uma dor dentro
alta e surda
Matéria de lembrança

tem uma dor sobre pele
triste e Irrecuperável
Matéria de agora

tem uma dor lá fora
funda e perto e longe
Morte revelada

Lucia de Moura Chamma




Estraçalhamento


Arte de Igor Morski

sou extremamente fiel
ao estraçalhamento
da minha própria carne

colaboro com os lobos:
eu mesmo devoro
algumas partes do meu corpo
enquanto as chamas ardem

se os abutres
recusam meu fígado
ofereço a língua viva
e vermelha como a tarde

às hienas e ratazanas
resta pouco: um osso
ou outro pra matar a fome
que as devora lá por dentro

mas em tudo
em cada naco
em cada mínimo
pedaço de mim
prometo

vai o melhor
do meu veneno

Carlos Moreira




quinta-feira, 5 de março de 2020

Eu-mulher


 Tela de Tarsila do Amaral
 
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
 
Conceição Evaristo



 

A missa dos inocentes


Imagem daWeb

Se não fora abusar da paciência divina
Eu mandaria rezar missa pelos meus poemas que não
conseguiram ir além da terceira ou quarta linha,
Vítimas dessa mortalidade infantil que, por ignorância dos pais,
Dizima as mais inocentes criaturinhas, as pobres...
Que tinham tanto azul nos olhos,...
Tanto que dar ao mundo!
Eu mandaria rezar o réquiem mais profundo
Não só pelos meus
Mas por todos os poemas inválidos que se arrastam pelo mundo
E cuja comovedora beleza ultrapassa a dos outros
Porque está, antes e depois de tudo,
No seu inatingível anseio de beleza!
 
Mário Quintana



 

Março voltou


Obra de René Magritte – Evening Falls

Março voltou, esta
ácida loucura de pássaros
está outra vez à nossa porta,
o ar
de vidro vai direito ao coração.
Também elas cantam, as montanhas:
somente nenhum de nós
as ouve, distraídos
com o monótono silabar do vento
ou doutros peregrinos.
Já sabeis como temos ainda restos
de pudor.
E pelo mundo
uma enorme, enorme indiferença.

Eugénio de Andrade



A casa vazia


Desconheço a autoria da imagem
 
a casa vazia é o primeiro passo
para aprender a ter medo

eu não pedi este silêncio

mas apesar de tudo
fico parada

se saíres, não deixes a porta aberta

Maria Sousa
in "Não abras a porta a estranhos"



 

Se eu nunca ver você de novo

 
 Ilustração: The Intercept "Pai, nunca mais vou ver você de novo"

Se eu nunca ver você de novo
Eu sempre vou levar você
dentro
fora

na ponta dos meus dedos
e nas bordas do meu cérebro

e em centros
centros
do que eu sou do
que restou
 
Charles Bukowski



 

Regar o jardim


Imagem da Web

Regar o jardim, para animar o verde!
Dar água às plantas sedentas! Dê mais que o bastante.
E não esqueça os arbustos, também
Os sem frutos, os exautos
E avaros! E não negligencie
As ervas entre as flores, que também
Têm sede. Nem molhe apenas
A relva fresca ou somente a ressecada:
Refresque também o solo nu.
 
Bertold Brecht








Receita contra dor de amor


Imagem da Web
 
Chore um mar inteiro
Com todos os seus barcos a vela
Chore o céu e suas estrelas
Os seus mistérios o seu silêncio
Chore um equilibrista caminhando
Sobre a face de um poema
Chore o sol e a lua
A chuva e o vento
Para que uma nova semente
Entre pela janela adentro

Roseana Murray



 

Chapeuzinho vermelho


 Desconheço a autoria da imagem

É dentro
de nós
que vive
a fera

Por mais que
queiramos
fugir dela

Por mais que
tentemos
ir embora

A fera sabe
a hora −
a fera não
espera

Jorge Lucio de Campos




quarta-feira, 4 de março de 2020

Poema da solidão



Arte de Meredith Marsone

Serei tão secreta
como o tecido da água

e tão leve

e tão através de mim deixando passar
toda a paisagem

e todo o alheio pecado
do gesto, da presença ou da palavra

que logo que a tua mão me prenda
me não acharás:

serei de água.

Glória de Santana



 
 

Às vezes recordo aqueles dias mornos


 
Arte de Tomio Seike

Às vezes recordo aqueles dias mornos,
a graça daquele corpo adormecido,
a brancura do leito num canto do quarto,
o livro abandonado, entreaberto,
a lâmpada submissa, a janela,
o barulho da chuva ao longe,
os lentos rumores da noite.
E penso então que foi linda a vida
e afago no peito as feridas do tempo.

Eloy Sánchez Rosillo



Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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