Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

sábado, 31 de dezembro de 2022

 O ano passado

 


  O ano passado não passou,
   continua incessantemente.
   Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.
As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.

O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.
Embora sepultos, os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.
E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado.

Carlos Drummond de Andrade


quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Eu te quero bem

 

Fotografia de Ines Rehberger

 eu te quero bem,
só não sou besta de sair por aí perguntando de você.
te quero bem e sempre vou querer,
o silêncio foi a forma que encontrei pra dizer.
te quero bem, mas torço pelo desencontro,
que as coincidências fiquem apenas para o início do amor.
peço que a gente não vá no mesmo café,
no mesmo dia, no mesmo fim de tarde.
me quero bem.

Bruno Fontes

 

 

Queda

 

Marvelous Female Portraits by Fernando Chassot
 

Je suis tombée
amoreuse, foi o seu
primeiro encontro
com o chão.  

Dessa vez partiu
em cacos o coração.
Os ossos só mais tarde,
um por um,
contra a terra.

C'est fou la vie,
essa derrocada
a que apenas resistem
memória e pássaro,
em voo picado.

Renata Correia Botelho


quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Virtuose

 

 Nathalia Arja in Firebird. Choreography by George Balanchine and Jerome Robbins © The George Balanchine Trust. Photo © Karolina Kuras

 

 Tenho dedos tortos para versos tristes
Tenho versos tristes para um bolero
Mas talvez um tango me caia melhor

Tenho pés cansados para valsas mortas
Nunca me arrisquei a inventar um passo
Digo, pesaroso, à mão que me convida:
Sou um passageiro deste verbo neutro

Como não sei dançar
Vou pedir um Porto
Vou me embriagar
Depois cair morto

Amanhã eu ressuscito

Com dedos tortos pra tocar um fado
Com pernas tortas pra dançar um tango
E versos curvos para um bolero

Com pé fagueiro para viva valsa
Com velha nova para história boa
Punho fechado de direito jab.

Terei me erguido antes da contagem.

Leandro Costa 



Dantes, pelos caminhos

 

Fotografia via Pixabay.com

 

 Quando a noite renova a planura
das sombras sobre a terra, os cães
ladram à palidez da lua, fustigados
pelo ranger das portas.
Dantes, pelos caminhos,
havia pessoas apressadas,
de regresso às casas, agora desertas
e as mulheres chamavam os filhos
com a mesma voz com que rogavam
pragas à miséria.

Graça Pires

 

 

A origem do mundo

 

 

Fotografia via Colorsforyou


De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra,
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com
a névoa da madrugada. O mundo, então,
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está
por baixo da terra; e as raízes sobem
numa direção invisível. De dentro
de casa, porém, um cheiro a café chama
por mim: como se alguém me dissesse
que é preciso acordar, uma segunda vez,
para que as raízes cresçam por dentro da
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul.

Nuno Júdice

in Meditação sobre Ruínas

 

 

Talvez um poema

 

Via "La Puerta Originals"

 Talvez um poema seja isto
uma porta escancarada para tudo
onde o nada nos aguarda sem ser visto

Talvez como uma pétala caída
de uma flor regada à ausência

Talvez como um amor sem violência
e a morte em ser morte desejada

Talvez seja o que não é palavra
mas é palavra na espera de ser vida

Talvez a desvelada anarquia
de teus olhos segredando rupturas
da linguagem no olhar da fechadura

Raul Macedo

 

 

 

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

É preciso

 

Fotografia Revista Crescer - Globo.com

 É preciso ser duro
como a pedra
como a pedra que parte
como a parte da pedra
que penetra a parede
e a parte
como a rede que não vaza
como o vaso que não quebra
como a pedra que fende
o paredão da casa
E é preciso ter ciso
e simulacro
É preciso todos os dias
vencer os deuses
pigmeus/golias
É preciso ter cara
e ter coragem
É cada vez mais raro
quem assim reage

É preciso ser duro
como o murro
como o muro
e é preciso ser doce
como se anteparo
de vidro
o muro fosse.
É cada vez mais raro
ser duro e doce
cada vez mais torpe
ser apenas duro
cada vez mais nulo
ser apenas doce
cada vez mais raro
cada vez mais duro
ser o muro e a nuvem
como se um só fossem

Ivo Barroso 

 

 

Zen

 

Beautiful blond woman standing in sunlight window, via Freepik

se conseguir esperar cem dias
e, principalmente, cem noites
debaixo da minha janela
serei sua, disse a princesa

e o soldado trouxe um banquinho
fez palavras cruzadas, bordado, tai chi
chorou, tomou barbitúricos, vitaminas, drinks
tomou inverno, verão

então
na nonagésima nona noite
mobiliou novamente seu corpo
pondo os ossos de pé
dobrou o banquinho e nunca mais
olhou pra trás

    Juliana Bernardo

 

   

 

Isso de mim que anseia despedida

 

O Ovo, 1928, Óleo sobre tela, de Tarsila do Amaral

 Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.

Hilda Hilst
in Cantares do Sem-Nome e de Partidas


Há sempre um rapaz triste

 

"Homem em um barco no nevoeiro", foto in Freepik



 Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco

a água é sempre azul
e sempre fresca

Em que país encontraria
amor e compreensão

em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte

Não respondem as gaivotas
porque voam

Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco

Antonio Reis
in Poemas Quotidianos

 

 

domingo, 25 de dezembro de 2022

Um sopro do coração

 

Imagem via Google

Esquece o que eu escrevi, deita-te aqui perto
e ouve só as minhas palavras sem sentido,
o balbuciar que eu solto antes da voz,
tudo o que há tanto tempo trago preso na garganta.

Nem o ritmo da cantilena aprendida na infância,
nem a música da poesia:

ouve apenas o balbuciar, o sopro antes da voz,
quase um estertor, mas a dizer agora
que estamos vivos.

Luís Filipe Castro Mendes
in Lendas da Índia

 

 

Mentira à boca pequena

 

"O Beijo", de Gustave Klimt
 "O Beijo, de Gustave Klimt

 … e aquelas mentiras
- máscaras à disposição -
que contei
para parecer legal…?

… e os teus olhos crédulos
a trilha sem retorno
o magma da culpa
lava doída
castigo precipitado
e no último instante
a liberdade destemida do improviso

… isso ou o silêncio
e aí não haveria garantia
de que teus inocentes olhos
permanecessem grudados em mim
enquanto teus desprotegidos lábios
seriam surpreendidos
pelo meu desejo a assinalar o teu

… e nós dois destinados
a grandes feitos – cúmplices...
e o futuro que zerasse
- se futuro houvesse -
todo aquele mau começo
a singela
rubra
úmida
a pequena mentira
dita cabalisticamente
ao fogo generoso da tua boca

Paulo Laurindo


 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Um minuto sobre o lado esquerdo

 


 

Um minuto sobre o lado
esquerdo.
Um minuto sobre o lado
direito.
Um pouco de costas,
um segundo sobre o ventre.
Dou voltas no vazio.
Frio nos meus sonhos,
frio na minha cama.
Os ladrões de sono saquearam a minha noite,
um deles
teve pena de mim
e deixou-me a manhã
na mesa-de-cabeceira.

Maram-Al-Masri 

 

 

Desassossego

 


Tu vens todos os dias à noitinha
e despes-te com tanta lentidão
com tanta lentidão que se adivinha
 a forma do teu próprio coração

 E quando vais é já noite fechada
não sei se vou ficar se vou sair
 não posso ter a alma sossegada
 sem saber se amanhã tornas a vir


 David Mourão-Ferreira 

 

 

À boca das areias

 

Obra de Claude Monet

 

À boca das areias, ardem quilhas insuspeitas.
Uma tempestade amotina-me o brilho do olhar.
A cidade inunda-se de barcos e, dentro de mim,
pernoita um marinheiro comprometido
com marés desmedidas.
Podia esquecer-te para sempre,
não fora a vertigem da tua sombra
a cercar os meus olhos.


Graça Pires 

 

 

Costura

 

Imagem Google


não ocupa
espaço.

não se trata apenas de um cenário.
uma seda desce o corpo.

não se trata
de um bastidor.

talvez uma luva uma preensão que o mundo
pode finalmente inverter sobre nós,

como se finalmente descobríssemos
a sua vontade, visitando o avesso.

Rui Cascais




Queria um filho

 

Tela de Jader Cysneiro

 

queria um filho
arranjou um gato

o amor é líquido
afeito a todo frasco.

Líria Porto

 

 

Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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