Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

sábado, 31 de dezembro de 2022

 O ano passado

 


  O ano passado não passou,
   continua incessantemente.
   Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.
As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.

O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.
Embora sepultos, os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.
E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado.

Carlos Drummond de Andrade


quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Eu te quero bem

 

Fotografia de Ines Rehberger

 eu te quero bem,
só não sou besta de sair por aí perguntando de você.
te quero bem e sempre vou querer,
o silêncio foi a forma que encontrei pra dizer.
te quero bem, mas torço pelo desencontro,
que as coincidências fiquem apenas para o início do amor.
peço que a gente não vá no mesmo café,
no mesmo dia, no mesmo fim de tarde.
me quero bem.

Bruno Fontes

 

 

Queda

 

Marvelous Female Portraits by Fernando Chassot
 

Je suis tombée
amoreuse, foi o seu
primeiro encontro
com o chão.  

Dessa vez partiu
em cacos o coração.
Os ossos só mais tarde,
um por um,
contra a terra.

C'est fou la vie,
essa derrocada
a que apenas resistem
memória e pássaro,
em voo picado.

Renata Correia Botelho


quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Virtuose

 

 Nathalia Arja in Firebird. Choreography by George Balanchine and Jerome Robbins © The George Balanchine Trust. Photo © Karolina Kuras

 

 Tenho dedos tortos para versos tristes
Tenho versos tristes para um bolero
Mas talvez um tango me caia melhor

Tenho pés cansados para valsas mortas
Nunca me arrisquei a inventar um passo
Digo, pesaroso, à mão que me convida:
Sou um passageiro deste verbo neutro

Como não sei dançar
Vou pedir um Porto
Vou me embriagar
Depois cair morto

Amanhã eu ressuscito

Com dedos tortos pra tocar um fado
Com pernas tortas pra dançar um tango
E versos curvos para um bolero

Com pé fagueiro para viva valsa
Com velha nova para história boa
Punho fechado de direito jab.

Terei me erguido antes da contagem.

Leandro Costa 



Dantes, pelos caminhos

 

Fotografia via Pixabay.com

 

 Quando a noite renova a planura
das sombras sobre a terra, os cães
ladram à palidez da lua, fustigados
pelo ranger das portas.
Dantes, pelos caminhos,
havia pessoas apressadas,
de regresso às casas, agora desertas
e as mulheres chamavam os filhos
com a mesma voz com que rogavam
pragas à miséria.

Graça Pires

 

 

A origem do mundo

 

 

Fotografia via Colorsforyou


De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra,
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com
a névoa da madrugada. O mundo, então,
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está
por baixo da terra; e as raízes sobem
numa direção invisível. De dentro
de casa, porém, um cheiro a café chama
por mim: como se alguém me dissesse
que é preciso acordar, uma segunda vez,
para que as raízes cresçam por dentro da
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul.

Nuno Júdice

in Meditação sobre Ruínas

 

 

Talvez um poema

 

Via "La Puerta Originals"

 Talvez um poema seja isto
uma porta escancarada para tudo
onde o nada nos aguarda sem ser visto

Talvez como uma pétala caída
de uma flor regada à ausência

Talvez como um amor sem violência
e a morte em ser morte desejada

Talvez seja o que não é palavra
mas é palavra na espera de ser vida

Talvez a desvelada anarquia
de teus olhos segredando rupturas
da linguagem no olhar da fechadura

Raul Macedo

 

 

 

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

É preciso

 

Fotografia Revista Crescer - Globo.com

 É preciso ser duro
como a pedra
como a pedra que parte
como a parte da pedra
que penetra a parede
e a parte
como a rede que não vaza
como o vaso que não quebra
como a pedra que fende
o paredão da casa
E é preciso ter ciso
e simulacro
É preciso todos os dias
vencer os deuses
pigmeus/golias
É preciso ter cara
e ter coragem
É cada vez mais raro
quem assim reage

É preciso ser duro
como o murro
como o muro
e é preciso ser doce
como se anteparo
de vidro
o muro fosse.
É cada vez mais raro
ser duro e doce
cada vez mais torpe
ser apenas duro
cada vez mais nulo
ser apenas doce
cada vez mais raro
cada vez mais duro
ser o muro e a nuvem
como se um só fossem

Ivo Barroso 

 

 

Zen

 

Beautiful blond woman standing in sunlight window, via Freepik

se conseguir esperar cem dias
e, principalmente, cem noites
debaixo da minha janela
serei sua, disse a princesa

e o soldado trouxe um banquinho
fez palavras cruzadas, bordado, tai chi
chorou, tomou barbitúricos, vitaminas, drinks
tomou inverno, verão

então
na nonagésima nona noite
mobiliou novamente seu corpo
pondo os ossos de pé
dobrou o banquinho e nunca mais
olhou pra trás

    Juliana Bernardo

 

   

 

Isso de mim que anseia despedida

 

O Ovo, 1928, Óleo sobre tela, de Tarsila do Amaral

 Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.

Hilda Hilst
in Cantares do Sem-Nome e de Partidas


Há sempre um rapaz triste

 

"Homem em um barco no nevoeiro", foto in Freepik



 Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco

a água é sempre azul
e sempre fresca

Em que país encontraria
amor e compreensão

em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte

Não respondem as gaivotas
porque voam

Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco

Antonio Reis
in Poemas Quotidianos

 

 

domingo, 25 de dezembro de 2022

Um sopro do coração

 

Imagem via Google

Esquece o que eu escrevi, deita-te aqui perto
e ouve só as minhas palavras sem sentido,
o balbuciar que eu solto antes da voz,
tudo o que há tanto tempo trago preso na garganta.

Nem o ritmo da cantilena aprendida na infância,
nem a música da poesia:

ouve apenas o balbuciar, o sopro antes da voz,
quase um estertor, mas a dizer agora
que estamos vivos.

Luís Filipe Castro Mendes
in Lendas da Índia

 

 

Mentira à boca pequena

 

"O Beijo", de Gustave Klimt
 "O Beijo, de Gustave Klimt

 … e aquelas mentiras
- máscaras à disposição -
que contei
para parecer legal…?

… e os teus olhos crédulos
a trilha sem retorno
o magma da culpa
lava doída
castigo precipitado
e no último instante
a liberdade destemida do improviso

… isso ou o silêncio
e aí não haveria garantia
de que teus inocentes olhos
permanecessem grudados em mim
enquanto teus desprotegidos lábios
seriam surpreendidos
pelo meu desejo a assinalar o teu

… e nós dois destinados
a grandes feitos – cúmplices...
e o futuro que zerasse
- se futuro houvesse -
todo aquele mau começo
a singela
rubra
úmida
a pequena mentira
dita cabalisticamente
ao fogo generoso da tua boca

Paulo Laurindo


 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Um minuto sobre o lado esquerdo

 


 

Um minuto sobre o lado
esquerdo.
Um minuto sobre o lado
direito.
Um pouco de costas,
um segundo sobre o ventre.
Dou voltas no vazio.
Frio nos meus sonhos,
frio na minha cama.
Os ladrões de sono saquearam a minha noite,
um deles
teve pena de mim
e deixou-me a manhã
na mesa-de-cabeceira.

Maram-Al-Masri 

 

 

Desassossego

 


Tu vens todos os dias à noitinha
e despes-te com tanta lentidão
com tanta lentidão que se adivinha
 a forma do teu próprio coração

 E quando vais é já noite fechada
não sei se vou ficar se vou sair
 não posso ter a alma sossegada
 sem saber se amanhã tornas a vir


 David Mourão-Ferreira 

 

 

À boca das areias

 

Obra de Claude Monet

 

À boca das areias, ardem quilhas insuspeitas.
Uma tempestade amotina-me o brilho do olhar.
A cidade inunda-se de barcos e, dentro de mim,
pernoita um marinheiro comprometido
com marés desmedidas.
Podia esquecer-te para sempre,
não fora a vertigem da tua sombra
a cercar os meus olhos.


Graça Pires 

 

 

Costura

 

Imagem Google


não ocupa
espaço.

não se trata apenas de um cenário.
uma seda desce o corpo.

não se trata
de um bastidor.

talvez uma luva uma preensão que o mundo
pode finalmente inverter sobre nós,

como se finalmente descobríssemos
a sua vontade, visitando o avesso.

Rui Cascais




Queria um filho

 

Tela de Jader Cysneiro

 

queria um filho
arranjou um gato

o amor é líquido
afeito a todo frasco.

Líria Porto

 

 

domingo, 20 de março de 2022

Palavra

 


Lendo o dicionário
encontrei uma palavra nova:
com gosto, com sarcasmo pronuncio-a;
apalpo-a, palavreio-a, amanto-a, decalco-a, pulso-a,
digo-a, tranco-a, lambo-a,
a toco com a ponta dos dedos,
tiro-lhe o peso, molho-a, amorno-a entre as mãos, acaricio-a, conto-lhe coisas, cerco-a, encurralo-a,
enfio um alfinete nela, encho-a de espuma,
depois, como a uma puta,
a expulso de casa.

Cristina Peri Rossi

 

 

sábado, 19 de março de 2022

Prece antes do baile

 

Nossa Senhora, me conceda essa graça...
(A vela ardente na madrugada
a guardar o segredo,
a pecaminosa prece).

... que seus braços envolvam
minha delgada cintura!

Por favor, mãe celeste,
que ele me peça uma dança
que eu sinta uma única vez
nossas mãos se tocarem

e talvez nos volteios da valsa
aperte-me em seu dorso
másculo
saindo pela boca
meu coração espartilhado.

Misericórdia, ó mãe,
já não posso dormir
nem comer nem rezar
sem querer esse moço
sem lembrar seu rosto
sem sonhar em sentir
sua barba bem-feita.

Mãe do perpétuo socorro,
que nossas faces se encostem
por breve elétrico instante, amém!

Lia d'Assis

 

 

 

 

sexta-feira, 18 de março de 2022

Cicatriz


" Down to Earth", arte de Michael Cheval

Passo a mão no joelho
ainda encontro
em alto-relevo
o voo do pássaro
que seguia com os olhos
enquanto eu,
menina,
viajava de bicicleta.

Maria Andrade

 

 


quinta-feira, 17 de março de 2022

A maior lista do mundo

 
"Sleep",  by Yulduskhon


se você me visse dormindo, me amaria
se me visse naquele dia em 1997, me amaria
se me visse dobrando um lençol de elástico, me amaria
se me visse descascando uma laranja, me amaria
se me visse folheando o jornal, me amaria
se me visse aos seus pés, me amaria
se me visse entre seus joelhos, me amaria
se me visse chorando, me amaria
se você me visse, me

Luana Claro
 
 



 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Vento no litoral

 

Fotografia de Dalva Nascimento
 

De tarde quero descansar
Chegar até a praia e ver
Se o vento ainda está forte
E vai ser bom subir nas pedras

Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando
Tudo embora...

Agora está tão longe
ver a linha do horizonte me distrai
Dos nossos planos é que tenho mais saudade
Quando olhávamos juntos
Na mesma direção
Aonde está você agora
Alem de aqui dentro de mim...

Agimos certo sem querer
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil sem você
Porque você está comigo
O tempo todo
E quando vejo o mar
Existe algo que diz
Que a vida continua
E se entregar é uma bobagem...

Já que você não está aqui
O que posso fazer
É cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos,
Lembra que o plano
Era ficarmos bem...

Ei!
Olha só o que eu achei
Hummm
Cavalos-marinhos...

Sei que faço isso
Pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando
Tudo embora

Renato Russo

 


 



sexta-feira, 11 de março de 2022

A tempestade

 

Arte de Margarita Georgiadis - The Unraveling, 2009

 {excerto}

Se pudesse encarnar e tirar agora do meu seio
aquilo que nele é mais profundo, se pudesse cingir
com palavras estes meus pensamentos, e assim exprimir
alma, coração, e espírito, paixões e todos os
sentimentos,

ah, tudo o que poderia desejar, e desejo,
sofro, conheço e sinto, sem que morra, numa só palavra
– e que essa palavra fosse “Relâmpago!” – eu a diria;
mas não, vivo e morro voltando para o silêncio apenas,
com sufocadas vozes que guardo como uma espada;

George Gordon Byron

 

 

quinta-feira, 10 de março de 2022

Queria ter estado junto a ti hoje

 

Escultura em cerâmica de Lucinda Brown

 Queria ter estado junto a ti hoje.
Os meus lábios andaram em fogo todo o dia
e fugiam para o teu nome
quando lhes soprava a aragem da poesia.
Já não me reconheço.
Não percebo quase nada do que digo
nem sei em que língua me disperso.
As palavras saem-me da boca, todas
de mão dada
contigo
mas engulo o teu nome
sempre que mergulho num verso.

Mário Lopes

 

 


quarta-feira, 9 de março de 2022

Último sonho


 

Foto de Kavring

 

A minha avó Isabel
ouvia em sonhos rebanhos de ovelhas
passando junto à janela.

Todas as noites, em plena cidade,
as ovelhas da sua infância visitavam-na.
Jurava que ouvia os suaves balidos,
o delicado tilintar dos chocalhos
misturando-se ao rumor de patas pisando o asfalto.

A minha avó Isabel
recebia a visita dos sons da sua meninice aos noventa anos.
Para ela, a cidade povoava-se de ovelhas invisíveis
pastando entre as recordações da sua infância na aldeia
sem eletricidade, sem água corrente, sem automóveis.

Quando um som, um cheiro, uma imagem ou uma voz
encontram o seu caminho de regresso até nós,
não há nada mais verdadeiro do que essa presença
vívida, intensa, verdadeira.

Talvez no final da nossa vida
nos permitam recordar o essencial,
o mais belo que tenhamos vivido.

Se é verdade que a nossa memória
nos concede um último desejo antes dessa viagem
em forma de ilusão com aspecto de realidade,
de alucinação esplêndida como um céu de verão,
com que som adormecerá cada um de nós?

María Paz Moreno



terça-feira, 8 de março de 2022

Tenho um decote pousado no vestido

 

By Robin Isely

 Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas,
mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o
verão.
E, se de noite as repito em surdina, no silêncio
do quarto, antes de adormecer, é como se de repente
as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses
em busca desses antigos recados levados pelo tempo:

Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo
e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas.
Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde
e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos.

Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão
do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos
do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela
música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever
as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo;
e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes.

Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta
meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias
afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo,
por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo
menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha
boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes.

Maria do Rosário Pedreira

 

 

segunda-feira, 7 de março de 2022

Até ao esquecimento

 

By Paolo Ventura

Cansados de inventar palavras
de dar nome ao silêncio
para afugentar tristezas
Cansados de olhar para o céu
rogando que chova
Que a água ou o vento
tragam um gesto que nos devolva a vida
Cansados de pedir aos mortos
que encham as nossas horas
que inundem com as suas vozes o nosso leito obscuro
Cansados por fim de acreditar
em labirintos
Optamos por deixar de interrogar as esquinas
por ignorar promessas
Optamos por fim por essa eternidade
que é o esquecimento.

Martha Carolina Dávila

 

 

domingo, 6 de março de 2022

Filosofal

 

Arte: Rob Woodcox

Fosse
A pedra
Um poema
- Poema
de jade! -
Morrerias
Sem saber
O que é
Preciosidade

Cris de Souza

 



sábado, 5 de março de 2022

Indecifráveis sinais

 

Ziqian Liu photography

Manchado de sal, o silêncio escorre-me na cara.
Os meus olhos tropeçam em raízes antigas
e movem-se-me, na memória, indecifráveis sinais:
marcas de nascimento, lugares e pessoas, gestos
e palavras. É madrugada. Os pássaros evitam
os voos rasantes, porque as últimas sombras
da noite lhes ferem as pupilas.

Graça Pires




 

 

sexta-feira, 4 de março de 2022

Dez réis de esperança

 

Fotografia de Max Dupain

 

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingênuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aquarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras seletas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

Antonio Gedeão

 

 

quinta-feira, 3 de março de 2022

Uma saudade que não cabe nas mãos

 

Arte de Christian Scholoe

 uma saudade
que não cabe nas mãos
cria asas

e voa

se solta num canto
de ave noturna
parda

antes ainda
do sol se pôr inteiro

Nydia Bonetti

 

 

quarta-feira, 2 de março de 2022

Encruzilhada

 

Imagem via Google

Quero te dizer tanta coisa,
mas não tenho tempo agora.
Quero te dizer tanta coisa,
mas temo, no tempo, ser inábil.
Quero te dizer tanta coisa,
mas tudo, tudo antes que o mundo acabe.

Descobri tanto neste tempo insano,
tanta insanidade neste cotidiano,
que queria, mesmo, ter tempo de te contar.
Na encruzilhada da vida versus morte,
melhor sorte, mesmo, é sonhar.
Conta pra mim, tu podes me esperar
💧
para sempre?

Eupaitio Caska

 

 

terça-feira, 1 de março de 2022

A balada da água do mar

 

Pintura do artista australiano Colley Whisson

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.

- Que vendes, ó jovem turva,
com os seios ao ar?

- Vendo, senhor, a água
dos mares.

- Que levas, ó negro jovem,
mesclado com teu sangue?

- Levo, senhor, a água
dos mares.

- Essas lágrimas salobres
de onde vêm, mãe?

- Choro, senhor, a água
dos mares.

- Coração, e esta amargura
séria, onde nasce?

- Amarga muito a água
dos mares!

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.

Federico Garcia Lorca

 

 
 

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Poema quase engasgado

 

Imagem via Google

Nesse tempo
Meu corpo
Caminha pro abismo
É mesmo preciso         
Que me deixes ir
Com esse ar faminto?
Ai, invades
Meu calendário
Arrancas esse dia
Sem coração
Em que no cenário
Só há migalhas
E eu preciso de pão


Cris de Souza 

 

 

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Meu coração é um lugar à meia-luz

 

Imagens Google

 meu coração é um lugar à meia-luz
eu murmurava
quando você partia e deixava
um pedaço do seu rancor
à madrugada e nos postais
revirados e entardecidos
tristes como um lenço
em sua caixa de naftalina,
uma estampa e a música
que se repete sempre que acordo, sedenta e sombria
esbarrando em minha própria casa desconhecida
acompanhando os passos no telhado, o recomeço dos verões um alarde: a moça grita da janela
será que já amanheceu? a água acabou e estamos todos suados inacabando o dia, revendo fotos, anotando
trechos do domingo
restam as flores que não comprei a luz apagada
o medo de que mais uma segunda pese como se passassem anos.

Lorena Martins

 

 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

No luxo do dia

 

Nascer do sol através da janela, photo de stock no Vecteezy

 no luxo do dia
irrompe abruptamente
o corpo de outro dia.

Não é uma vaga miragem,
nem um recordo impaciente,
nem uma premonição
que explode e se antecipa.

Outro dia ocupa este dia
porque às vezes o tempo
corrige a si mesmo.
Ou somente se substitui:
cede seu turno a outro
de seus múltiplos leitos.

O relevo do tempo
não se oculta na sombra.

Roberto Juarroz

 

 

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Sou tantas, sou nenhuma

 

Arte de Irene Sheri Vishnevskaya

 Não sou Amélia
a mulher que dizem de verdade
nem Carolina vendo a vida da janela
não sou a Rita que calou um violão
ou um retrato maltratando um coração

não sou as mulheres do Roberto
nem mesmo namorada de um amigo meu
não sou Maria Carnaval que virou pó
tão pouco uma Julieta sem Romeu

quem sabe eu seja as mulheres do Lenine
não sou nenhuma e todas elas numa só?
talvez, do Chico, eu seja a tatuagem,
uma risonha e corrosiva cicatriz

quem sabe, enfim, eu seja um soneto
ou as mulheres que só dizem sim?

No fim,
de todas elas,
eu sei, serei somente aquela
que por amar-te tanto
fechou o coração
largou num canto
e mesmo em meio ao pranto perdoou.

Alice Daniel

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A palava mágica

Bordado sobre fotografia - arte de Mana Marimoto

 Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Roda da fortuna

 

"Golden Tears", de Gustav Klimt

 

foi difícil
eu poderia dizer
foi muita lágrima
mas foi mais difícil
e mais lágrima
q isso
 
mas foi
e porque foi
contar é fácil
e da lágrima quase
não lembro seu
percurso
de montanha russa
é a planície
do rosto

Juliana Bernardo

 

 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Cadeira na varanda

 

Arte de Li Gui Jun

Pendurei meu pensamento
entre a avenca
e a samambaia.
Num galho da roseira,
espetei
meu coração.

Sossegados,
enfim,

meus olhos pastam a grama do jardim.

Marcelo Sandmann

 

 

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Exílio

 

Fotografia de Jerzy Wardak

minha sombra é saudade sem alforria
saudade de minha sombra

vento não apaga sombra nem leva saudade
vento desfolha galhos

e larga o chão de vazios
 

Lucia De Moura Chamma 

 

 



sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Amor

 

Fotografia de José Canelas

 

Na véspera de ti
eu era pouca
e sem
sintaxe
eu era um quase
uma parte
sem outra
um hiato
de mim.

No agora de ti
aconteço
tecida em ponto
cheio
um texto
com entrelinhas
e recheio:

um precioso corpo
um bastante sim.
 
Maria Esther Maciel 

 

 

 

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Redesenho sobreposto ao azul

 

 

Study for Inner Improvement, Helena Almeida, 1977

 dói
dói tanto que já nem sei
se é minha essa agonia

imagino que tanta consumição
a natureza nos pouparia

 então
deve ser um tanto de fantasia
própria de quem tem medo de altura
que anda sempre na faixa
que olha para os dois lados da rua na hora de atravessar
que se desculpa
que pede licença pra tudo que faz na vida
que obedece à risca o respeito ao outro
(na igual proporção que deseja ser respeitado)
e que quando deseja beijar alguém
costuma se esconder nos versos de um poema…

e nessa aflição

que é do fato de existir 

eis-me aqui

numa palavra
um contumaz idiota

do tipo que não deve
e não pode
e não tem porque duvidar de suas melhores intenções
do tipo acostumado a viver
esgueirado dos lindos olhos verdes de marialva aguardados

tão culpado
tão desastrosamente condenado

mas que ainda traz em si

em meio a este infinito desconsolo 

um mundo inteiro de futuras e possíveis alegrias

Paulo Laurindo

 

 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Pretexto

 

Fotografia de La Luna, no Pinterest

Basta uma lua
E vira uivo
O verso
Basta um vinho
E vira verso
A uva
Basta um verso
E vira vasto
O resto

Cris de Souza

 

 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Corpo


Desconheço a autoria da imagem

que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa

abre a janela debruça-te
deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio
o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo

Al Berto

 

 


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Depuração

 

Imagem via Pinterest

Por que o menino em mim é tão insone,
coberto de séculos, moinhos?
O menino depura o ar do homem
e na morte não deixa ele sozinho.

E nem a eternidade, esta azinheira
florida nos úmeros e linhos.
O menino perdeu-se numa feira
e o homem se privou da luz ao tino.

Pois o homem perece, enquanto brota
o limo da infância na planície
de vivos e mortos. E se esgota.

O menino depõe nos seus sapatos
as pegadas incaicas da velhice.
Onde andará no velho estes espaços?

Carlos Nejar

 

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Guardar

 

Arte de Tatiana Parcero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

 

Antônio Cícero

 



sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Barreirinha

 

Fotografia de Antonio Carlos Farias



De repente, pai, entre
o silêncio de duas ondas
ouvimos a única pergunta:

quantas vezes
ainda nadaremos juntos?


Manuel de Freitas


 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Medo

 

Fotografia de Annie Leibovitz
Fotografia de Annie Leibovitz


Não quero que esta menina
se transforme em andorinha;
voa a mergulhar no céu
e não desce à minha esteira;
num beiral faz o seu ninho
e as minhas mãos não o vestem.
Não quero que esta menina
se transforme em andorinha.

Não quero que esta menina
venha a ser uma princesa.
Com sapatinhos dourados
como brincará nos prados?
E quando vier a noite
ao meu lado não se deita.
Não quero que esta menina
venha a ser uma princesa.

E menos quero que um dia
façam dela uma rainha.
A um trono subiria,
lá onde os meus pés não chegam.
E quando viesse a noite
não poderia merecê-la.
Não quero que esta menina
seja um dia uma rainha.

Gabriela Mistral



Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

Postagens populares

Total de visualizações de página