Estou de volta... como a primavera!

"Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa..."

Manuel Antonio Pina

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Mistério

 

Fotografia conceptual de Misha Gordim


Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranquilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.

Adalgisa Nery
no livro "Cantos da Angústia"


Homenagem que se faz à poetisa, romancista, contista, jornalista e política carioca, 

nascida em 29 de outubro de 1905.

Deus na antecâmarra

 

 

Fotografia conceptual de Misha Gordim

 

Mereço (merecemos, meretrizes)
perdão (perdoai-nos, patres conscripti)
socorro (correi, valei-nos, santos perdidos)
Eu quero me livrar desta poesia infecta
beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pelos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sanguinária
(sangue e amor se aconchegando
hora atrás de hora)
Eu quero pensar ao apalpar
eu quero dizer ao conviver
eu quero partir ao repartir
filho
pai
e
fogo
DE-LI-BE-RA-DA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós (com a gente) se dando
HOMEM: ACORDA!

Ana Cristina Cesar


Uma homenagem a poetisa Ana Cristina Cesar, que falecia em 29.10.1983




quinta-feira, 23 de setembro de 2021

No túnel escuro

 
Vista da cidade pela janela do trem, 1980, @metrosp_oficial

Fui jovem aqui. Andava
de metrô com o meu livrinho
como se procurasse defender-me

deste mesmo mundo:

não estás sozinha,
dizia o poema,
no túnel escuro.

Louise Glück

Abandono

  


imagem via Tumblr

E ao fim do meu dia
a matéria de que se faz a minha vida
de novo abandonada
de novo de novo abandonada
pergunta-me silenciosa
se ao apagar da luz
a vida terá princípio.

Pedro Tamen

Luz

 


Fotografia de Luis Argerich via Vagabondish

Seja de dia ou de noite
trago sempre dentro de mim
uma luz.
No meio do ruído e da desordem
trago silêncio.
Trago
sempre luz e silêncio.

Anna Swir

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Se vindes procurar-me aqui

 

 
Desconheço a autoria da imagem

Se vindes procurar-me aqui,
vinde, portanto, lentamente e com doçura
e com receio de riscar
a porcelana da minha solidão

António Barahona


 
 



Em segredo

 

 Imagem Google 

Mas temos o vinho
e temos as cartas:
essas que uma vez marcámos
em segredo
para que ambos perdêssemos
quando jogássemos
um
contra o
outro.
 
José Carlos Barros
 

 
 

 


 

O sol em sonhos

 

Arte de Caspar David Friedrich
 
O sol esconde-se na calma
das primeiras horas do sono.

O sol adormece comigo.

O sol em sonhos
pede-me para ouvir
segredos que eu não conto.
 
J. Alberto de Oliveira 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

A identidade, como a pele


Arte de Tatiana Parcero

A identidade, como a pele,
renova-se, perde-se de sete
em sete anos, muda no mesmo
corpo, torna diferente
a permanência humana.

A identidade é a soma
das intenções, uma foto
instantânea para um propósito
imediato que não dura.

A identidade é um equívoco
para camuflar o coração.

Pedro Mexia
 
 
 

Não escolho nada

Arte de Lilla Cabot Perry

Não escolho nada deixo-me vestir
Pela música discreta que tacteia
Meu corpo em sua breve caminhada.

Não desejo nada consinto apenas
Que a dor me visite e a jovem ceifeira,
Mãe das coisas todas, me seduza.

Não escolho nada nem sequer o vaso
Onde me derramo devagar
Como se fosse água, ou leve lume.

Casimiro de Brito
in 'Na Via Do Mestre'
 
 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Balada de sempre

 

Imagem via imgfave.com

Espero a tua vinda
a tua vinda,
em dia de lua cheia.
Debruço-me sobre a noite
a ver a lua a crescer, a crescer.

Espero o momento da chegada
com os cansaços e os ardores de todas as chegadas.
Rasgarás nuvens de ruas densas,
Alagarás vielas de bêbados transformadores.
Saltarás ribeiros, mares, relevos.
- A tua alma não morre
aos medos e às sombras!

Mas...,
Enquanto deixo a janela aberta
para entrares,
o mar,
aí além,
sempre duvidoso,
desenha interrogações na areia molhada.

Fernando Namora

 

 


A bicicleta

 Arte by Edgard Castaños

O meu marido saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior.
 

Alexandre O'Neill
in As horas já de números vestidas
 
 


Eu no seu olho

 

Fotografia de Richard Avedon

Eu
no seu olho
nítida

[e antes
do instante
invertida]

eu tímida
investida
de nova
espera

[de nove
horas
despida]

eu úmida
no seu chove
não molha
diluída

[na língua ambígua
do seu camaleolho
eu

traduseduzida]

Valeria Tarelho

 

 

 

sábado, 23 de janeiro de 2021

Escuta o rumor do meu coração

 

Arte de Christina Troufa

Escuta
o rumor do meu coração
afogando-se em
pirotecnia valvular
nunca antes teve tanta urgência,
nunca antes trabalhou tão
afoito

Escuta
o que não digo,
milhões de sílabas de um idioma
não transcrito

Escuta
a cadeia sonora
por detrás dos meus suspiros,
uma sonoplastia a decifrar.

Maitê Rosa Alegretti
 
 
 

Um desafio exibido nas ancas

 

Arte de Jock Burrowes 
 
 Dentro de si mesma, a noite
não tem contornos:
Serve-se das sombras
para repatriar exilados afetos.
Abro as janelas, de par em par
e caminho sobre as horas,
com jogos ilícitos presos à cintura.
Um desafio exibido nas ancas.
O vértice das pernas, a sobrançar um rio,
subitamente cheio.

Graça Pires





Aprendamos, Amor

 

Imagem via Wallpapersfull.com

Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito

De banhar no azul dos horizontes.
Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.

José Saramago 

 

 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Se o que penso

Fotografia de © Michaela Knížová

Se o que penso
e o que sinto
fossem o que penso
e o que sinto

não teria assim tão maltratado
o coração.

Ah como o homem
é cheio de inquietação
e tolice.

Antonio Brasileiro
in Pequenos Assombros




De forma ambígua

Fotografia de Chiara Fersini

De forma ambígua, avoluma-se no chão
a silhueta de uma sedução nunca relatada.
Fixo no espelho uma imagem múltipla de mim.
Comparo-me com quem sou.
Ensaio afetações, até à primordial aparência:
audaciosa, desnuda, porta vidrada
a todas as intimidades.
Através dos meus poros deslizam enigmas,
cujo fascínio não tem retorno.
Moro num noturno simbolismo,
porque infrinjo todas as utopias
que me apontam signos luminosos.
É de noite que me sinto orfã de todas as mães.

Graça Pires
De Conjugar afetos, 1997


 

Mar



Imagem via amopintar.com

Mar! Mar!
Mar! Mar!

Quem sentiu mar?

Não o mar azul
de caravelas ao largo
e marinheiros valentes

Não o mar de todos os ruídos
de ondas
que estalam na praia

Não o mar salgado
dos pássaros marinhos
de conchas
areias
e algas do mar

Mar!

Raiva-angústia
de revolta contida

Mar!

Silêncio-espuma
de lábios sangrados
e dentes partidos

Mar!
do não-repartido
e do sonho afrontado

Mar!

Quem sentiu mar?

Arménio Vieira
Escritor cabo-verdiano
Prémio Camões 2009

 

sábado, 9 de janeiro de 2021

Amigo

 
Fotografia via Pinterest
 
 arrumei a cama abri a janela plantei flores azuis amornei
a água perfumei os cabelos há gavetas para a tua dor
cabides para pendurar o medo e se quiseres terás novo
cobertor podes trazer o gato, o teclado os velhos
os discos de jazz o amor o cansaço estou à tua
espera.

Líria Porto




Chuva de vento

 

Fotografia de Cris Lautert


De que distância
chega essa chuva
de asas, tangida
pela ventania?

Vem de que tempo?
Noturna agora
a chuva morta
bate na porta.

(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal.)

De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?

Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?

Estendo-lhe a mão: a chuva fria.

Mauro Mota
in Itinerário

 

 


O dia é só um esboço

 

Barco à vela ao nascer do sol, Claude Monet
 
 o dia é só um esboço ainda do que talvez não seja
telas em branco, tantas
outras são cores abstratas
puro concreto às vezes se impõe
viver é mesmo arte. que seja:- pintura ou palavra
um barco à vela. vento
ao acaso

Nydia Bonetti
 
 
 

Interlúdio com ...

Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones

Will You Still Love Me Tomorrow

Norah Jones

Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?

Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?

Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?

I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?

Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...

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